Surpreendentes inutilidades do Poupatempo 31/10/2012

Por Claudia Riolfi

O amor não tem hora ou lugar, e o serviço “Escreve Cartas” é o melhor exemplo disso

Implantado pelo Estado de São Paulo em 1996, o Poupatempo é, essencialmente, prosaico. Normalmente, não se vai lá porque se quer, mas porque se deve. Um perdeu seus documentos, outro precisa providenciar um atestado de antecedentes criminais e por aí vai. Alguém poderia pensar, portanto, que, neste ambiente, o amor não pode florescer. Quanta ignorância! Para o humano, a necessidade de amar impõe seu advento mesmo nos lugares mais improváveis, ou, ainda, envolvendo protagonistas insuspeitos.

Essa pequena ideia, embora óbvia, não parece ser de senso comum. Saiu até no jornal. No primeiro semestre deste ano, a Folha de São Paulo publicou uma matéria descrevendo o trabalho das voluntárias no serviço Escreve Cartas, implantado, em 2001, nos Poupatempo de Itaquera e de Santo Amaro. Escolhidas por ter caligrafia bonita, estas senhoras depositam na folha branca o conteúdo ditado pelos usuários, transformando palavras vãs em marcas indeléveis. Segundo elas, estas mexem não só com quem dita, mas, também, como quem transcreve as cartas.

Sábias voluntárias lacanianas! Em Itaquera, tem até “expert” no assunto: Sandra Lya de Melo, 59. Ela costuma ser procurada por analfabetos com classificados amorosos em mãos. Os lê, discute com as pessoas suas escolhas e, depois, planeja como melhor vender o peixe. Ao fazê-lo, elas têm duas coisas em mente: não se preocupam a fidedignidade com a realidade e, sim, com escrever bonito.

Sem ter lido as conversas na Capela de Sainte-Anne, que Lacan intitulou “Estou falando com as paredes”, estas senhoras perceberam que “O que há de melhor nesse curioso elã chamado amor é a carta”. Perceberam, ainda, que como nenhuma palavra pode recobrir a riqueza da experiência humana, não é possível falar de amor sem parecer imbecil. Por fim, notaram que, quando não se pode falar, resta-nos escrever.
Comentando esta passagem de Lacan, Jorge Forbes afirmou que as cartas de amor são sempre poéticas. Como a poesia, elas ressoam no corpo de quem as lê. O amado as completa, dizendo: fiquei tocado. Quem as escreve fez esta escolha porque perdeu a expectativa de ver o amor representado. Sabe que, entre os amantes, o único encontro possível é a alusão. Que cenário promissor!

Ele desmente as fantasias dos críticos da chamada sociedade de consumo. Apavorados com a impossibilidade do encontro amoroso no cotidiano louco dos grandes centros e indignados com a suposta falta de necessidade de amar que os sofisticados habitantes das metrópoles vivenciam, eles pensam que missivas e missivistas estão extintas. Erraram. Inúteis, bonitas e caprichadas, as cartas de amor são eternas.