Por Alain Mouzat
Cientista engajada no debate ético, ao qual nos convidam os avanços da Genética, Mayana Zatz fala sem rodeios
A cientista, professora titular de Genética Humana da USP, comenta também a sua experiência de sete anos de acompanhamento dos atendimentos na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano-USP, criada e dirigida, a seu convite, por Jorge Forbes.
O MUNDO – Na última década, nem todas as grandes expectativas sobre a cura pela Genética se concretizaram. Qual o papel da imprensa e a posição dos cientistas com relação a isso?
Mayana Zatz – O que interessa para a imprensa é publicar notícias impactantes. Mas os cientistas que estavam envolvidos no projeto Genoma Humano – a primeira fase foi publicada em 2000 e em seguida em 2003 –, já sabiam que era o começo do começo. Já era sabido que, entre sequenciar o genoma humano e achar cura para doenças, havia um longo caminho. Mas, obviamente, dizer isso não tem graça. Então os jornalistas sempre preferem anunciar: “isso vai se transformar em tratamento para as doenças”.
O MUNDO – As pesquisas agora estão levando em conta a epigenética. O que muda?
Mayana Zatz – A epigenética virou palavra da moda, mas, desde aquela época, já se sabia que havia muita coisa além das mutações genéticas. No meu projeto de pesquisa de 1998, uma das perguntas cruciais era: como explicar que pacientes portadores de uma mesma mutação desenvolvam quadros clínicos totalmente diferentes? Não se ignorava a existência do junk DNA, o DNA lixo, que é o DNA não codificado, ou seja, que não é transformado em proteínas. É óbvio que a gente sabia que ele devia ter uma função importante. Agora está se tentando determinar essa função. Ano passado foi publicado o projeto Encode, que mostrou que existem 4 milhões de alterações nesse DNA que regulam os genes. A pesquisa trouxe muitos dados e inúmeras questões novas vêm se abrindo, possibilitando muitas vias de pesquisa. Nós estamos engatinhando nessa área.
O MUNDO – Mesmo as revistas científicas são sensíveis a publicar notícias mais chamativas?
Mayana Zatz – Com certeza, mas toda descoberta científica abre novas vias de pesquisa. É um novo caminho e levanta inúmeras questões. Um exemplo: as células IPS (Induced Pluripotent Stem), que deram o prêmio Nobel para Shinya Yamanaka, foram uma descoberta extremamente importante, por mostrar que dá para reprogramar uma célula adulta e fazê-la ter comportamento semelhante ao da célula embrionária. Posso pegar uma célula sua e derivar no laboratório várias linhagens que correspondem a células do seu corpo: linhagens neuronais, musculares, o que eu tiver interesse em estudar. A gente chama isso de “o paciente numa placa de Petri”. Isso permite fazer estudos que não poderiam ser feitos no paciente, inclusive tentar responder por que, no caso de duas pessoas com a mesma mutação, uma expressa a doença e a outra não. As células IPS abriram um caminho gigantesco para pesquisa. Estou interessada em estudar as células IPS em doenças neuromusculares; outra pessoa quer estudar as células IPS em doenças ósseas, isso se tornou possível graças a essa descoberta. A cada grande descoberta, abrem-se caminhos. Isso é modismo? Não, é uma nova ferramenta de estudo. Da mesma forma que o grande feito da clonagem da ovelha Dolly não foi a clonagem em si, mas mostrar, pela primeira vez, que uma célula adulta poderia ser reprogramada para formar qualquer célula.
O MUNDO – A epigenética introduziu o impacto do meio ambiente no indivíduo. Vai mudar como entendemos a ação da bioquímica no corpo?
Mayana Zatz – Sim, o ambiente pode ter uma influência maior ou menor. Por exemplo, no caso de dores de cabeça ou de alergias. A exposição a muito sol, por exemplo, pode desencadear uma enxaqueca. O ambiente pode ter efeitos muito importantes. Mas dou um exemplo em que a psicossomática não altera nada: as crianças que nascem com uma malformação congênita. Não tem psíquico que vá fazer isso mudar.
O MUNDO – Qual é sua convivência com a psicanálise na clínica do Genoma?
Mayana Zatz – O que mais me convence são os resultados: muitos pacientes que vimos aqui tiveram uma melhora muito grande. Se existe lógica na psicanálise, eu não sei: é muito diferente da nossa lógica, a científica (risos).
O MUNDO – Você acha que tem um tipo de relação de causa e efeito na evolução dos pacientes? Você constata resultados?
Mayana Zatz – Eu acho que não existe uma causalidade para todos, mas existe uma probabilidade de efeito enorme que depende da individualidade das pessoas. Não existe uma regra geral… para um paciente uma estratégia funciona, para outro não. Mas, no geral, o efeito tem sido muito bom.
O MUNDO – Às vezes Jorge Forbes pergunta aos pacientes se eles podem dizer como a análise agiu, por que funcionou. Você poderia responder a essa questão?
Mayana Zatz – Difícil. Acho que os pacientes não sabem dizer. Eles estão expostos a uma nova realidade, a uma posição completamente diferente que é “desautorizar o sofrimento”. Isso vai contra tudo o que eles estão acostumados, contra o que as pessoas, a sociedade em geral, esperam deles. Ter pena e compaixão é uma atitude socialmente muito bem considerada. Enquanto – e isso é uma coisa que nós aprendemos aqui com os pacientes – a última coisa que eles querem é compaixão. Mostrar para os pacientes que eles têm possibilidades de viver, que eles não precisam se alienar, se excluir da vida, é uma grande novidade. Eles podem se reinventar.
O MUNDO – Curto e grosso: a palavra pode gerar alterações bioquímicas no corpo?
Mayana Zatz – Sim. Se uma pessoa te diz alguma coisa negativa, você pode ficar deprimido, não pode? Quando uma pessoa fala: “Você é uma porcaria, você não vai fazer nada na vida”, pode ter um impacto muito grande, principalmente se for uma mãe que diz isso para o filho. Disso a gente não tem dúvida. Quer dizer, ou ele reage dando um tapa na pessoa ou realmente sofre as consequências.
O MUNDO – O contato com a psicanálise nesses últimos sete anos influenciou sua forma de trabalhar ou de pensar?
Mayana Zatz – De pensar a reação dos pacientes, sim. Porque, como cientista, preciso ver para crer. Não acredito em teorias que não podem ser provadas, mas vi os resultados. Então não tenho dúvida disso. Inúmeros pacientes estavam muito deprimidos e, realmente mudaram totalmente. Mas têm pacientes que não respondem ou que não querem nem vir, que não acreditam nessa possibilidade.
O MUNDO – Você poderia comentar o recém-falecimento do Prêmio Nobel Christian de Duve, de quem você era bastante próxima?
Mayana Zatz – Foi uma perda enorme, eu o conheci de perto. Eu o encontrava uma vez por ano, numa reunião de grupo de cientistas do mundo inteiro. Eu o admirava muito, era extremamente lúcido, sabia o nome de todos, a pesquisa de cada um… Era impressionante. A última vez que o encontrei ele estava com netos e os filhos, todo mundo o admirando. Ele sofreu uma grande perda, a esposa dele, que morreu há uns cinco anos. Todos acharam que ele não ia sobreviver, porque foi um casamento de 60 ou 70 anos. Seu falecimento foi uma grande perda, realmente.
O MUNDO – Nos seus livros, Christian de Duve demonstrava uma fé numa transcendência próxima a uma fé religiosa. Fiquei surpreso com o que me pareceu uma profissão de fé materialista, mesmo ateia, e também com a escolha da eutanásia.
Mayana Zatz – É, foi uma surpresa para mim também, porque o último livro dele, do qual ele autografou um exemplar para mim, tem uma conotação meio religiosa. Vou reler. Todo mundo acha que quando a esposa morreu, ele perdeu a alegria de viver.
O MUNDO – A eutanásia é legal na Bélgica. Qual sua posição ética como cientista?
Mayana Zatz – Eu sou totalmente a favor. Totalmente a favor. Acho que prolongar uma vida que não tem mais volta não faz sentido. Eu penso nisso quando penso em mim: não gostaria de ficar arrastando a vida se não tivesse volta.
O MUNDO – A senhora acredita que se os pacientes tivessem acesso usariam?
Mayana Zatz – Dependendo da doença, acho que sim. Tem doença em que a pessoa não tem sequer a possibilidade de se matar nas fases finais, mesmo que queira. E a pessoa tem que ter o direito. Da mesma maneira que acho que interromper uma gestação é decisão do casal, ninguém tem que meter o bedelho nisso. A decisão de não querer mais sofrer é do paciente, é individual.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em línguistica, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana