Somos todos adotados 31/07/2013

Por Jorge Forbes

Desde que nascemos nos contam que Papai e Mamãe são as pessoas que mais nos compreendem, que nem precisamos abrir a boca e já sabem o que queremos

Você foi encontrado na lata do lixo!

Quem, ao menos uma vez na vida, tendo irmãos mais velhos, não escutou, angustiado, essa declaração de má procedência. Se esse insulto pega, se ele atemoriza suas vítimas, se ele é eficiente, como é, é por tocar em um ponto sensível ao animal humano: a desconfiança da filiação. Todos nós desconfiamos se realmente pertencemos à família que portamos no nome e isso porque pensamos que a família é o lugar onde seríamos compreendidos em nossas dores e desejos, sem mal entendidos. Desde que nascemos nos contam que Papai e Mamãe são as pessoas que mais nos compreendem, que nem precisamos abrir a boca e já sabem o que queremos. Um “ai” é dor de ouvido; um “ei” é sinal de fome; um “ii” é felicidade pura e assim por diante. Então, quando começam os desentendimentos, em vez de se por em cheque a possibilidade de compreensão total, o que pensamos é que houve um erro de família. Ora, se não conseguimos escapar ao mal entendido, não é por erro ou por má vontade, mas porque ele é inevitável, uma vez que o que dói e o que dá prazer tem sempre uma carga de inominável.

Essa nossa desconfiança estrutural provoca a vontade de nos criarmos selos de origem certificada, como se faz com os vinhos, em árvores genealógicas muitas vezes encomendadas. Tudo vale para enobrecer o presente capenga em um passado glorioso. Muitos buscam um artista, um político importante, um milionário, um erudito, um herói, ou melhor ainda um conde, entre seus antepassados. Tem uma cidade de turismo de inverno no estado de São Paulo, Campos do Jordão, que adora se apresentar como a Suíça brasileira – mais um tipo de filiação imaginária – na qual uma loja faz sucesso vendendo heráldicos brasões a todos os que passam. Ninguém escapa, ninguém leva bola preta, tem brasão para todo mundo.

Essa tendência do amor à tradição, mesmo que encomendada e paga – tal qual o burguês fidalgo – deve aumentar nos tempos atuais. Nossa época, chamada de pós-moderna, quebrou os padrões de sentido da anterior. Nada mais é como dantes era, do nascimento à morte, passando pelo amor, pela educação, pelo trabalho etc, nos levando a uma crise de orientação, a um desbussolamento generalizado, que nos hipertrofia e generaliza a sensação de “fui adotado”. E para piorar, dando base científica a essa fantasia, os estudos atuais do DNA têm revelado que, no Brasil, aproximadamente dez por cento das pessoas não são filhas biológicas de seus pais. Dez por cento é muito, não? Já pensaram? Em uma classe ou em uma festa de cem pessoas, dez têm outro pai biológico. Santas mães dos céus!

Em decorrência, constatamos uma febre de pertencer a alguma fraternidade, clube, nicho e semelhantes agrupamentos. Surgem clubes do vinho, do charuto, de viagem. Dão-se festas temáticas com roupas uniformizadas. Revistas se dirigem a nichos como o do luxo, no qual todo mundo se veste igual com a mesma roupa “exclusiva”. Há uma ânsia de pertencer a uma linhagem, de fazer parte, de ser reconhecido, de garantir um lugar estável no mundo. O medo está no ar, as pessoas temem que a linha do celular caia, ou serem deletadas das redes sociais. Mais do que nunca tudo o que era sólido se desmancha no ar. Pior que nascer na lata de lixo é ser incinerado vivo e virar cinza sem memória no Outro.

Jorge Forbes é psicanalista. Texto publicado originalmente na revista IstoÉ Gente