Por Suelen Igreja
Sem amadurecimento, é fácil se perder no labirinto de repetições acríticas do “lacanês para principiantes”. Num estágio ideal, o desenvolvimento da psicanálise lacaniana dispensa cópias e mistificações
Quando alguém diz que está fazendo formação em psicanálise lacaniana é muito comum ouvir comentários como “Ah, mas psicanálise é muito difícil”, ou “Parece que os psicanalistas estão falando outra língua”. De fato, por vezes estão falando aquilo que, jocosamente, nomeia-se “lacanês”. Como seria possível uma transmissão da psicanálise que não fosse pautada na reprodução de frases prontas e conceitos nebulosos?
Ao iniciar sua formação, é comum que a pessoa esteja maravilhada com as aulas, os autores e leituras que está fazendo. Com o tempo, esse encantamento vai se limitar à tão conhecida reprodução dos conceitos, ou vai haver algum avanço? Para respondê-la, recorremos às elaborações iniciais de Lacan, a partir das quais poderíamos classificar o “espelhar-se no outro” em três categorias: 1) não perceber a diferença entre ele e o outro; 2) se culpabilizar por não ser igual ao outro; ou 3) buscar, no outro, um traço mediador.
Na primeira categoria, a pessoa está tão maravilhada que não consegue perceber onde o corpo do ídolo termina e onde começa o seu. Tenta agir como se fosse o outro, mas só mete os pés pelas mãos. Um exemplo: caso veja alguém que se destaque pela competência no ambiente de trabalho, o sujeito em formação pega o traço “chama a atenção” para imitar. Como, entretanto, não discrimina sua causa, para chamar atenção, passa a usar roupas chamativas e decotadas.
Na segunda categoria, está a pessoa que se deu conta da inutilidade de virar uma cópia barata do ídolo. Percebe que seu trabalho, ainda imaturo e incipiente, não chama tanto a atenção assim. Resultado: sente-se culpada. Inconformada com os seus limites, começa a criar desculpas imaginárias para justificar a diferença entre ela e o outro. Tende a achar defeitos no outro para difamá-lo e depreciar seu trabalho. Assim, projeta a raiva de si no outro. Fazendo intriga, por exemplo, entre os colegas de trabalho. Acaba ficando com seu nome mais sujo do que pau de galinheiro.
Na terceira categoria, a pessoa reconhece em seu ídolo traços que se destacam, e que o comovem, mas se limita a admirá-los. Não os reproduz; ao menos, não deliberadamente. Segue dois princípios básicos para nortear suas ações: 1) copiar alguém para fazer o sucesso que ele faz é tão inútil quanto ridículo, pois o traço distintivo de uma pessoa, no qual ele se apóia para executar sua obra, não é a sua imagem; e 2) atender as expectativas do ídolo é impossível, pois não há meios para adivinhar o que oferecer para agradar o outro.
Para se destacar em uma multidão, uma pessoa não pode limitar-se a olhar para seus ídolos, louvando as suas invenções. Trata-se de se apoiar nelas e perceber o que lhe dá arrepios, o que lhe causa repulsa, o que lhe faz chorar. E é a partir de suas reações corporais que se abre a possibilidade, para alguém, de se nortear para além da tietagem. Pode, inclusive, deixar de gastar tempo com as intrigas e passar a investir na sustentação de seus desejos.
Desse modo, frases que servem de referência à obra de um autor, ou conceitos que constituem o legado de uma área podem ser vistos como produtos e anos de trabalho. Entendido isso, o sentido de “honrar o nome de seus antepassados” passa a tomar outro sentido, que não o da reprodução. Trata-se de compreender que, antes de fazer a sua leitura de um texto, primeiro faz-se necessário contextualizar em que circunstâncias os conceitos foram pensados, com que perspectivas teóricas o autor dialogava, e assim por diante.
É a partir desse trabalho investigativo, de curiosidade, que alguém pode traçar caminhos desenhados a partir de seu próprio corpo, e de preferência, partilhá-los com os pares.