Solidão na Prática Psicanalítica

Solidão na Prática Analítica 21/11/2019

Jorge Forbes

Existem solidão e solidões. Para o objetivo deste comentário, vou restringir o uso da palavra solidão para nomear a “diferença absoluta”, termo utilizado por Lacan ao final do Seminário XI, designando o que singulariza cada pessoa e a que uma análise deve atingir. Afirma Jacques Lacan: “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando confrontado com o significante primordial. O sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver”.

Por outro lado, me refiro a solidões, lato sensu, ao sentimento de se ver sozinho, incompreendido, mal-amado, abandonado, azarado, penalizado etc. etc. A solidão, neste sentido, é cantada tanto em verso e prosa, quanto em categorias da psicopatologia. Na primeira, são inúmeras as referências literárias e musicais sobre a solidão, habitualmente saudando o amor perdido. Entre diversos exemplos, podemos lembrar de músicas como “Dança da Solidão”, de Paulinho da Viola, e “Eu Preciso Aprender a Ser Só”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle.  Na psicopatologia, em um superficial desenho, encontramos o obsessivo reclamando que faz tudo sozinho; a histérica se vendo só e incompreendida; o psicótico sofrendo a solidão do sentido; e o perverso exaltando sua maldade solitária.

A discussão sobre solidão está na moda, motivada pela suposta – insisto no termo ‘suposta’ – epidemia hedonista dos jovens solitários com seus computadores e tablets, vivendo nas redes sociais. De minha parte, entendo essa solidão ser um tema atual, principalmente devido ao fato do desbussolamento causado pela queda da verticalidade das identificações, sendo as paternas o melhor exemplo. A Pós-Modernidade, TerraDois, por multiplicar os padrões, confronta cada pessoa a uma escolha que, por não haver um standard, gera em cada um o medo de estar sozinho.

Nietzsche nos ajuda neste aspecto, através do seu conceito de “niilismo”. Niilismo, para ele, é o oposto do que pensa o bom senso que, como sempre, pensa mal. Na linguagem corrente, niilista é aquele que não acredita em nada. Para Nietzsche é o oposto, niilista é aquele que preenche o vazio constitutivo da essência humana, através de suas crenças, independentemente de serem naturais, religiosas ou científicas.

Em um trabalho anterior que apresentei no dia da fundação da Escola Brasileira de Psicanálise, chamado “O homem cordial e a Psicanálise”, trabalhei uma frase provocativa de Nietzsche, ao eu comentar a cordialidade do brasileiro, frase que assim diz: “Vosso mau amor de vós mesmos faz do isolamento um cativeiro”. No dizer de Sérgio Buarque de Holanda, “existe um pavor de enfrentar o viver consigo mesmo”. A solidão atual está na base dos novos racismos, previstos por Jacques Lacan em seu texto “Proposição de 9 de outubro de 1967”, ao escrever: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação”. Sob o manto protetor e moralista do politicamente correto, proliferam, hoje, os mais diversos clubes de ajuda mútua.

Como amar a diferença radical? Seguramente não será proliferando superegos auxiliares criadores de grupos, todos culpados, todos se desculpando pelo que são. Por sua raça, por seu sexo, por sua profissão, por sua posição política, por suas relações de amizade, por sua constelação familiar, etc. Parece que só escapa desta lista, por enquanto, o time de futebol.

Qual ação analítica pode ser implementada para o tratamento atual da solidão?  Vou me referir à Primeira e à Segunda Clínica de Jaques Lacan: A Clínica do Simbólico e a Clínica do Real. Na primeira, que é a clínica da interpretação, do dar mais sentido, a análise deve fazer seu trabalho de ir quebrando as amarras da culpa, de demandas prescritas, no duplo sentido da palavra, ou seja, do que deve ser e do ultrapassado. Cito Lacan, em “Direção do Tratamento e os Princípios do seu Poder”, quando explica que “a regressão não mostra outra coisa senão o retorno, no presente, de significantes comuns, em demandas para as quais há uma prescrição”. Da Clínica do dar mais sentido, temos hoje um passo a mais, a Segunda Clínica, aquela que dá um sentido a menos, e não a mais, como dito, a Clínica do Real. Ao dar sentido a menos, ao pressionar, por exemplo, uma conclusão precipitada pelo tempo lógico em uma sessão analítica, vamos da clínica da interpretação à clínica da consequência, a clínica do ato. Vamos do Freud explica, ao Freud implica. Nesta clínica da consequência, saímos da culpa, que é o preço que se paga por se querer o reconhecimento do outro, e entramos na invenção responsável. Invenção de um novo sentido e responsável por fazê-lo passar no mundo. Isso pode ocorrer se uma análise for dirigida para o surgimento do homem ou da mulher prontos, preparados a todas as circunstâncias. Essa expressão “estar preparado a todas as circunstâncias”, me foi comentada por Jaques Alain Miller, dizendo ser de um italiano desconhecido.  Estar pronto a todas as circunstâncias é abrir mão dos mutualismos racistas atuais. É abrir mão do reconhecimento narcísico vindo do outro, é ultrapassar o mau amor a nós mesmos, como já me referi, e é atingir um novo estado da civilização de colaboração responsável, uma vez que a identidade não sendo mais estanque, é estabelecida em cada circunstância, fugindo à moral dos costumes e operando na ética do desejo.

Nietzsche chamava de “grande estilo” os escassos momentos, os sublimes momentos de perfeito equilíbrio entre as forças ativas e as forças reativas, conforme seu linguajar.

Podemos então concluir dizendo que a diferença absoluta, base de uma vida que não tem piloto automático, mas que exige uma resposta a cada circunstância, evidencia, o que parece ser um paradoxo, que para estarmos juntos é necessário se alicerçar na solidão que nos constitui singularmente.

São Paulo, 17 de outubro de 2019.