Dorothee Rüdiger
Lançar um olhar mais crítico e analítico sobre os receituários da felicidade foi o propósito do filósofo Luc Ferry, quem, a convite do psicanalista Jorge Forbes e da Fundação Armando Álvares Penteado, abordou e debateu o tema tão polêmico da felicidade na conferência, seguida de debate, sobre “Psicanálise versus psicologia positiva: a inflação das ideologias de felicidade”.
A felicidade existe. Lota as prateleiras das livrarias e das bancas de jornais de São Paulo a Paris e pelo mundo afora. A julgar pelos livros da chamada “psicologia positiva”, que prometem caminhos para se alcançar a tão desejada felicidade, cada um de nós não só merece, como também consegue ser feliz, independente de sua posição social ou de outras circunstâncias em que possa se encontrar. Basta exercitar as mais diversas formas do desapego e da autoestima preconizadas por essa literatura.
Tal como o psicanalista, o filósofo Luc Ferry preza, em sua vasta obra, a experiência concreta. Os títulos de seus livros, verdadeiros bestsellers na França, curiosamente soam como se pertencessem ao gênero do “aconselhamento sentimental”: “Aprender a viver”, “Vencer os medos”, “Famílias amo vocês” … No entanto, quem busca por trás desses títulos “livros de autoajuda”, vai encontrar neles justamente a crítica à psicologia positiva.
Como diz o título da conferência, Luc Ferry parte da observação de que hoje vivemos uma verdadeira inflação de ideologias da felicidade. Espalharam-se mundo afora. Essas ideologias têm, segundo Ferry, algumas caraterísticas em comum, que, resumidamente, giram em torno do desapego, do imediatismo e do narcisismo.
Vamos à questão em torno do que pode ser chamado de “desapego”. Os autores da psicologia positiva defendem a ideia de que a felicidade vem do agir interior e de que a vida exterior não importa e deve ser aceita do jeito que é. Essa ideia, de que o mundo pode ser negligenciado, não é exatamente nova. Budismo e Estoicismo pregam, há milênios, aceitar “a vida como ela é” e a importância dos valores internos para alcançar a felicidade interna e eterna. Para esses “felizes” o “mal-estar na cultura” não existe, mas também não os “episódios de felicidade” dos quais dizem Sigmund Freud e Immanuel Kant.
O “exercício da sabedoria” é outro elemento da chamada “psicologia positiva”. Distribuir bilhetes com frases da sabedoria ou distribuir abraços por aí, parece levar ao estado de felicidade. Séculos antes de Cristo, os Cínicos faziam esses exercícios arrastando peixes mortos atrás de si para mostrar que não se importavam com o olhar e com a opinião dos outros. Importante era a felicidade interna que se podia sentir apesar dos olhares tortos que essas esquisitices atraíam.
Nesse contexto, cabe também o conselho de “não se apegar” nem a objetos e nem a pessoas. Só a vida longe da civilização e das pessoas amadas, a vida monástica, proporcionaria a felicidade. O argumento: quem se liga a pessoas amadas pode perdê-las. A perda, sendo uma fonte de infelicidade, a felicidade é alcançada por quem não se apegar a nada e ninguém. É necessário meditar, não se deixar atrapalhar pelos altos e baixos da vida exterior para alcançar a paz interior.
Paradoxalmente, a vida desapegada e atrelada a valores internos está na psicologia positiva ligada a algo tão narcísico quanto a autoestima. De acordo com Ferry, ela é um dos ingredientes principais das receitas de felicidade, tão em voga. Pode ser condensada na palavra “ama-te a ti próprio como um pai ama seu filho” de um dos seus autores, Christophe André. O mito de Narciso, o belo, hoje chega a ser considerado como um mito “positivo”. Essa “releitura” da história de Narciso confronta a mitologia grega e irrita o filósofo que dedicou longas horas a seu estudo.
Luc Ferry reforça, que a história de Narciso é uma tragédia. Consultado sobre o destino do menino lindo que acabava de nascer, Tirésias, o vidente, vaticinou que ele não poderia “se ver demais” sob pena de morrer de fome e de sede. Mas, Narciso, bonito e admirado, não quer saber de oráculos. Ele, literalmente, “se acha” . Brinca com o amor da deusa Eco e é responsável por sua morte. Condenado por Nêmesis, irmã de Eco, deve apaixonar-se por um ser que ele jamais poderia possuir: ele mesmo. O triste fim de Narciso se conhece. Morre admirando-se no espelho d’água. Foi “autoestima” demais?
O elemento talvez mais sedutor das ideologias da felicidade para Luc Ferry é o comando de deixar de lado o passado, não se preocupar com o futuro e viver o presente. O antigo comando carpe diem implica para os autores da psicologia positiva a ideia, que vivemos mal, porque vivemos ora no passado, na nostalgia, ora, cheios de esperança, deixamos a vida melhor para depois. Os Estoicos diziam que a esperança e a nostalgia nos impediam de viver o presente. Daí melhor “captar o dia”, ao qual Ferry se mostra cético.
É necessário também, de acordo com a psicologia positiva, “preencher sua natureza” com o “autoconhecimento”. Conhecer sua “natureza” e viver de acordo com esse conhecimento seria outro caminho para a felicidade. Acontece, diz Ferry, que o ser humano não tem natureza. Filósofos existencialistas, tais como Simone de Beauvoir, de quem é a constatação de que “uma mulher é um homem qualquer” negam a “natureza humana” . Sendo humanos, não somos predestinados a preencher qualquer papel por “natureza”.
Mas, afinal, de onde vem o sucesso dessas ideologias da felicidade que preconizam, ao mesmo tempo, o desapego do mundo e o narcisismo ensimesmado? Para Luc Ferry, a chave da compreensão é a mudança cultural no mundo ocidental percebida pela da filosofia da “desconstrução”. Assim, a tonalidade na música foi desmanchada por Arnold Schönberg, a pintura clássica por Pablo Picasso, o teatro por Samuel Becket, o ballet por Pina Bausch, para citar exemplos no campo da arte. A “desconstrução criativa”, conceito utilizado pelo economista Joseph Schumpeter para caracterizar o capitalismo do século XX, produziu uma ruptura e uma inovação permanente, não só na produção capitalista e na arte, como também nos costumes, o que implica o que o filósofo Herbert Marcuse chama de “dessublimação repressiva”, isto é, a desconstrução de valores tradicionais para dar lugar ao hiperconsumo. E se, last but not least, as grandes narrativas, os ideais do catolicismo ao comunismo, se foram, restaram o cuidado consigo mesmo, a retirada na vida privada e ecologia que, por sua vez, substituiu o comunismo como ideal político.
A crítica de Luc Ferry endereçada à psicologia positiva é severa. Crer na felicidade padronizada que, ainda por cima, não depende do outro e dos outros é mais que uma bobagem, é uma impostura culpabilizante. Provoca frustração e infelicidade, porque sua promessa não pode ser cumprida. Pois, contrário à infelicidade, na maioria das vezes ligada à perda de alguém ou de algo, a felicidade não pode ser definida e ainda menos padronizada. Além disso, como seres humanos somos seres que têm cultura, têm história. É no relacionamento com os outros que temos que encontrar a felicidade. Em última análise, e nisso Luc Ferry concorda com Sigmund Freud, a felicidade pode ser experimentada em raros momentos de alegria que nos fazem superar, por instantes, o mal-estar na civilização.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo