Por Liége Lise
A psicanálise possibilitou a uma criança incluir o estranho, frente aos sintomas de uma doença genética e ao medo da morte, sem transformá-los em certeza trágica.
Na abertura de O Estranho, Sigmund Freud, em 1919, escreveu a respeito da estética como qualidade do sentir, tema avaliado por ele como raro à pesquisa de um psicanalista. O autor discorreu acerca das inquietações humanas mais atávicas, dentre elas as da infância, como o medo do escuro, do desconhecido e da morte. A partir da expressão alemã Unheimlich – o estranho, o sinistro – trabalhou o paradoxo que o termo encerra: aquilo que nos é mais íntimo e familiar é também o que nos causa mais estranheza.
Arthur é um menino bonito, inteligente e sensível. Tem 10 anos e é portador da Distrofia Muscular de Duchenne. Adora ler livros de aventura, mangás e quadrinhos, andar de skate, subir em árvore e jogar videogame. Seu encaminhamento para a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano da USP foi a pedido da escola. Ele era um aluno de ótimo comportamento, mas, apresentava dificuldade na cópia da lição da lousa, não acompanhava o ritmo da classe e atrasava na feitura das provas. Perseguido pelo medo de não ter tempo de finalizar as atividades, ficava ainda mais ansioso e chorava.
Na família, há um tio portador da doença, já com os sintomas avançados, motivo que o levou a usar cadeira de rodas. Na primeira entrevista no Genoma, é a mãe quem falou por Artur. Calado e buscando acolhida na mãe, ele pouco se expressou. A cumplicidade com a mãe reforçou sua inibição. Ele se queixou de ser excluído das brincadeiras na hora do recreio e ser motivo de chacota dos colegas. Estava isolado e ressentido em uma posição de rejeição.
Jorge Forbes conduziu a entrevista. Nas respostas, poucas pistas, uma vez que Artur se restringiu a responder monossilabicamente. – Você sonha? Na resposta, um aspecto subjetivo importante foi revelado. Ele disse que sim, que sonhava. – Que tipo de sonhos?, perguntou Jorge Forbes. Cada sonho é diferente, resposta que veio com voz embargada. A mãe contou que ele tinha muitos pesadelos, sonhava que ia morrer, que um homem queria matá-lo, por isso acordava assustado. A partir desse ponto, Jorge Forbes elegeu com Artur o ponto a ser privilegiado no trabalho que se seguiria.
A direção do tratamento seria possibilitar que Artur se expressasse e trabalhar a sua angústia. Ele tinha um sofrimento significativo que apareceu nesses sonhos de angústia. Artur sabia que a doença é mortal e que seria morto por ela, era isso que expressavam os seus sonhos de repetição. Os sonhos de uma pessoa são as formas como ela elabora suas satisfações, ressaltou Jorge Forbes.
Na primeira sessão, Artur contou dos seus medos: de morrer, de se afogar, de morcegos e de vomitar. Falou também do medo de ficar igual ao tio. Queixou-se de que os colegas zoavam dele por sua dificuldade de correr. Adorava fazer aula de educação física, mas nem sempre era escalado nas atividades. Era sempre o último a ser escolhido na montagem das equipes e às vezes ficava de fora.
Identificado ao mesmo diagnóstico do tio, Artur vivia diariamente a máxima, “eu sou você amanhã.” Apresentava um embotamento na fala, que vinha seguido de choro. Retraía-se diante dos colegas que o zoam e o excluíam das brincadeiras, porque ele caía.
A resposta mais comum de Artur sempre que lhe fazia perguntas era: Não sei, seguido de um longo silêncio. Eu não aceitava e lhe dizia que isso não era resposta, pois ao falar a gente pode descobrir coisas que sabe e não sabia e também coisas que não se sabe. Para tudo que o não se sabe, a gente tem de inventar uma resposta. Ficar perguntando tudo para sua mãe é muito chato!
Um dos primeiros movimentos em análise foi a retomada das aulas de desenho. Ao trazê-los para a sessão, a partir dos heróis e personagens por ele inventados, Arthur passou a dar voz para suas fantasias, medos, aventuras e façanhas. Os personagens, ricos em detalhes, pertencem a esquadrão de heróis, são ágeis, lutadores, sagazes, cheios de segredos e surpresas nos ataques, fazem uso de armas de fogo, espadas, facas, luvas e botas com acessórios sofisticados. Ao contar as histórias dos personagens sua fala flui, ri e acha graça das situações. Recentemente, os desenhos que eram de lápis grafite preto, começaram a ganhar cor. A última criação foi uma colagem com várias imagens dos seus heróis prediletos e gostos pessoais.
Artur contou que teve um sonho em que seu tio Erasmo caía sobre ele. O peso dele o sufocava. Tudo ficou escuro e ele não enxergava nada. Acordou assustado. Ao falar sobre esse sonho, disse do medo de ficar igual ao tio. Disse que, embora tenham a mesma doença, ela se apresenta de forma diferente em cada pessoa e que ele é diferente do seu tio. É nesse momento que o convido para olhar para a digital do seu dedo. Falo dessa marca única que indica que cada pessoa tem uma expressão singular de ser. Digo que o jeito como ele lida com as coisas da sua vida irá fazer toda a diferença.
Artur chegou a uma sessão dizendo: não me atraso mais na cópia, fui o primeiro a terminar a lição! Minhas notas melhoraram! Trouxe seu boletim. Contou que recebeu seus amigos em casa para ensaiar uma peça de teatro que apresentaram na gincana da escola. Na ocasião, também declamou poesia e tocou flauta, apresentou três números. Em uma atividade recente na escola foi o líder do grupo na composição de uma coreografia de dança.
A distrofia, as dores nas pernas, a doença do tio, a morte como a incerteza mais certa parecem compor o estranho íntimo familiar que Artur precisa incluir sem se identificar tragicamente. A isso é que a análise tem visado.
Artur teve uma queda do skate novo que ganhou de aniversário. Foi bobo, eu estava sentado, nem estava de pé, uma pedra enroscou na roda, deu um tranco e eu caí de queixo. Falamos sobre a queda e da importância do uso de equipamentos de segurança e do investimento necessário em um capacete com protetor para o queixo. Ele então concluiu: mesmo meu pai ficando brabo. Vou continuar andando, não vou parar. Skate é arte, cair faz parte.
Liége Lise é psicanalista, membro do IPLA – Instituto da Psicanálise Lacaniana.