Situações da clínica « psi » #1 08/07/2014

Por François Leguil

A advertência freudiana é clara: não existe ciência sem a exigência de um debate democrático

Primeiramente algumas palavras em latim, língua da medicina até o final do Século das Luzes, até a invenção da psiquiatria: “Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo”. Estão no sétimo canto da Eneida: “se não posso dobrar os deuses de cima, farei Aqueronte agir”. Em outras palavras: se eu não for ouvido pelas potências que nos governam, farei com que os debaixo, os mortais, se mexam.”

Freud colocava essas palavras como epígrafe de sua “Interpretação dos sonhos”, por meio da qual esperava modificar inteiramente a compreensão dos fatos mentais e dos sofrimentos afetivos. Com essa citação um pouco preciosa, ele anunciava sua revolução com uma solenidade comparável ao fervor que, um século antes, presidira ao nascimento da medicina mental. Sabemos, evidentemente, que o alienismo serviu os poderes oficiais. Isso não deve contudo fazer esquecer que a psiquiatria nasceu da vontade de tratar de maneira diferente aqueles que falavam de seus sofrimentos morais e mentais, com a preocupação de estabelecer classificações que permitissem melhor resolver o enigma de suas causas.

Isso foi contestado nos anos 1960 e 1970. Devemos muito ao despertar dessas contestações. Contudo, o nascimento da psiquiatria foi, queiramos ou não, o momento mesmo em que foram construídas as bases epistemológicas de um primeiro conhecimento racional dos fenômenos em questão.

Por que era preciso, um século mais tarde, soar o alarme convocando Virgílio? Porque fazia vinte ou vinte e cinco anos que a medicina mental estava abandonando todas as suas hipóteses psicopatológicas, com exceção de uma única, a do “todo biológico” que propõe a identidade do mental e do cerebral; a do “preconceito somatista” de Kurt Schneider.

Em 1900, Freud exprimia não a sua reserva face à hipótese orgânica, mas sua oposição à sua ditadura, à imposição de não se acreditar em nada além dela, de não admitir nenhuma outra suposição etiológica. Citemo-lo: “A concepção somática da interpretação dos sonhos corresponde às tendências que dominam atualmente a psiquiatria. Tudo o que poderia provar a independência da vida mental com relação a modificações orgânicas… assusta nossos psiquiatras atuais… Sua desconfiança colocou a psique sob tutela.” (G. W., Tomo 2, p. 45). A advertência freudiana era clara: não existe ciência sem a exigência de um debate democrático. O que as clínicas atuais esqueceram.

François Leguil, de formação psiquiátrica, exerce a psicanálise em Paris. É membro da l’Ecole de la Cause freudienne (ECF), da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).

Texto original em francês. Tradução para o português de Alain Mouzat.         

Veja o texto original em francês:

Situations de la clinique « psy »

                    Quelques mots d’abord, en Latin, la langue  de la médecine jusqu’à la fin du Siècle des Lumières, jusqu’à l’invention de la psychiatrie : « Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo ». C’est au septième chant de l’Enéïde : « si je ne peux fléchir les dieux d’en haut, je ferai agir l’Achéron ». Autrement dit : si je ne suis pas entendu par les puissances qui nous gouvernent, je ferai bouger ceux d’en bas, les mortels.

                   Freud plaçait ces mots en épigraphe de son « Interprétation du rêve » par laquelle il espérait modifier entièrement la compréhension des faits mentaux et des souffrances affectives. Par cette citation  un peu précieuse, il annonçait sa révolution avec une solennité comparable à la ferveur  qui, un siècle plus tôt, présidait à la naissance de  la médecine mentale. Certes, nous savons que l’aliénisme a  servi  les pouvoirs officiels. Cela ne doit  pas faire oublier que la psychiatrie est née d’une volonté  de traiter autrement ceux qui parlent de leurs souffrances morales et mentales, avec un souci d’y établir des classifications qui permettent de résoudre mieux l’énigme de leurs causes.

                   Cela a été contesté dans les années 1960 et 1970. Nous devons beaucoup à l’éveil de ces contestations.  Pourtant, l’événement de la naissance de la psychiatrie a bel et bien eu lieu, quand ont été construites les bases épistémologiques d’une première connaissance rationnelle des phénomènes pertinents.

                   Pourquoi fallait-il, un siècle plus tard, sonner le tocsin en convoquant Virgile ? C’est que depuis vingt à vingt-cinq ans la médecine mentale abandonnait toutes ses hypothèses psychopathologiques, à l’exception d’une seule, celle du « tout biologique » qui pose l’identité du mental et du cérébral ; celle du « préjugé somatiste » de Kurt Schneider.

                   En 1900, Freud exprimait non pas sa réserve face à l’hypothèse organique, mais son opposition à sa dictature, à son commandement de ne croire à rien d’autre, de n’accueillir aucune autre supposition étiologique. Citons le : « La conception somatique de l’interprétation du rêve correspond aux tendances qui dominent actuellement la psychiatrie. Tout ce qui pourrait prouver une indépendance de la vie mentale par rapport à des modifications organiques… effraie nos psychiatres d’aujourd’hui….Leur méfiance a placé la psyché en curatelle » (G. W., Tome 2, p. 45). L’avertissement freudien était net : pas de  science sans l’exigence d’un débat démocratique. Les cliniques actuelles l’ont oublié.

François Leguil , de formation psychiatrique, exerce la psychanalyse à Paris. Il est membre de l’Ecole de la Cause freudienne (ECF) , de l’Ecole brésilienne de psychanalyse (EBP) et de l’Association Mondiale de Psychanalyse (AMP).