Por Dorothee Rüdiger
Visto pelo prisma da psicanálise, a angústia é o grande tema desse filme. Ela não está explicitamente presente. Está entre as linhas, está na fala e no silêncio dos personagens, no enquadramento das imagens
Quem já sentiu a angústia da ausência da mãe? Ela sai, vai trabalhar, faz compras, tem seus compromissos. Para a criança, as horas não passam. Cresce a angústia. “Será que ela volta?” “Que horas?”
“Que horas ela volta?” deve ter perguntado o neto de Sigmund Freud, quando, numa tarde qualquer, sua mãe saiu de casa e deixou o filho na casa dos avós. O neto de Freud encontrou uma saída para sua angústia. Jogando um carretel de linha para baixo do sofá (ou teria sido o divã?) e puxando-o de volta, elaborou a angústia da ausência da mãe, inventou uma maneira para lidar com sua castração: fort, da, fort, da, fort …
O filme Que horas ela volta?, a respeito da empregada doméstica Val e a família de sua patroa, Bárbara, sabe tocar a angústia infantil dos espectadores. O filme, em cartaz nos cinemas paulistanos, está fazendo sucesso. Além da curiosidade do público, recebeu prêmios, no Brasil e no Exterior. Foi escolhido a concorrer ao Oscar em 2016.
Visto pelo prisma da psicanálise, a angústia é o grande tema desse filme. Ela não está explicitamente presente. Está entre as linhas, está na fala e no silêncio dos personagens, no enquadramento das imagens. A narrativa apresenta as complexas relações entre a empregada doméstica Val e a família de Bárbara, para a qual trabalha. É construída em torno da angústia do menino, Fabinho, que espera pela volta da mãe que ressoa e toca a angústia de Val, que deixou a filha no Recife para vir a São Paulo trabalhar. “Que horas ela volta?”
A mãe de Fabinho não está só fisicamente ausente. Dedicada ao trabalho e à gerência da família, não enxerga nem filho, nem marido, que dirá sua “secretária”, Val. Não há conversa, não há relação sexual. Literalmente. O marido está entregue ao abandono pelos cantos da casa. Cada um tampa sua angústia como pode. Bárbara tenta seguir as convenções sociais da classe média alta. Para ela, cada um tem seu devido lugar no tabuleiro do xadrez social. Val, a empregada, arranja-se com a servidão voluntária à família que adotou. Ocupa seu lugar no tabuleiro. Carlos, o dono da casa no Morumbi, era uma vez um artista plástico. Agora procura refúgio na depressão. Já o adolescente Fabinho encontra nos braços “maternos” de Val alento para sua angústia.
Esse “romance familiar dos neuróticos”, como diria Freud, segue com seus padrões e clichés até a chegada de Jéssica, filha de Val. Jéssica é uma mulher singular. Mostra a que veiou. Embaralha as posições dos personagens do romance enfadonho. Inconformada com a espera pela mãe e com o destino no tabuleiro social, é capaz de colocar em movimento tudo e todos. Não se convence pelo que se apresenta nas aparências e convenções. Cutuca. Suas cutucadas fazem aparecer ódio, libido, confissões de fracassos, novas possibilidades de laços amorosos. Rompendo com as convenções, consegue nada menos que a liberdade de cada um se posicionar, de uma maneira singular, diante da vida.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo
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