Por Liége Lise
Se não há uma análise igual à outra é porque a direção que se deve dar a cada tratamento é singular, encontrada no embaraço que cada pessoa traz
Na primeira entrevista na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano com Mayana Zatz e Jorge Forbes, o paciente Cristóvão, 25 anos, portador de distrofia de cinturas, ao ser perguntado pelo psicanalista como estava sua vida, com desdém respondeu, com algumas limitações. O seu corpo cambaleante mostrava, com sinais agravados da doença, comprometimento da sua marcha e equilíbrio. Disse que levava uma vida normal, não fazia referência aos sintomas da doença.
Falava com voz pastosa e gaguejando. Forbes perguntou: alguma coisa na sua fala? Não. Respondeu com descaso. Com sinais de apatia e desentusiasmo, diz que não sente vontade de fazer as coisas. JF pontua: Não ter motivação é não apostar em coisas que você acha que não vão dar certo.
Cristóvão, ao longo da entrevista, mostra-se infantilizado. Não gostava de sair com os amigos. Não namorava. Revelava pouca subjetivação e investimento libidinal nas coisas que fazia. Relaxado com seu peso, o que piorava os sintomas da doença, estava descomprometido com seus estudos e tratamentos.
Os pontos elencados na direção do tratamento foram: incluir a doença na sua vida. Causar o rapaz para que aderisse à análise. Tocar na sua dimensão de desejo em alternância ao sistema de necessidade ao qual ele estava se orientando nas escolhas. Restringir o espraiamento da doença e despertar a libido atrofiada de forma a reverberar em mostras de atitudes.
No início das nossas sessões Cristóvão não fixava o olhar ao falar comigo. Queria ficar falando de amenidades e contando a programação esportiva de televisão do final de semana. Perguntei no que poderia ajudá-lo, me disse que achava que era tímido e acomodado. Tenho tudo o que quero na mão. Não conseguia imprimir um ritmo de estudo e trabalho.
Seu sonho era namorar e ter uma turma de amigos. Perguntei sobre o porquê isso não acontecia, ele respondeu com irritação e desdém. Reação comum quando lhe questiono diante das suas queixas. Apresentava dificuldade em consentir com seus atos falhos e expressões que possibilitariam abrir para a construção de outro saber, inconsciente e singularizado.
Passados três meses de tratamento, pela primeira vez, ele usou a expressão: “a minha doença” e falou das limitações em decorrência dela. Não poder ir para as festas, pois não consegue ficar de pé e nem dançar. O medo de se apaixonar e ser rejeitado pelas meninas. A solidão. Queria alguém para deitar junto no sofá, ver filmes e se divertir.
Na medida em que conseguiu incorporar a doença, se tornou menos agressivo e refratário. Começou a dar sinais de que havia escolhido a doença, consentido com a falta radical e os limites que ela implicava.
Na entrevista de retorno com Mayana Zatz e Jorge Forbes, Cristóvão chegou vibrante, o motivo era a aprovação em um concurso público. Perguntado sobre como foram os seis meses de análise, disse: Eu mudei a chave da minha cabeça. Antes eu até sabia que tinha que fazer, mas, não fazia. Mudei de posição. Estudei. Colhi o fruto. O que incomoda Cristóvão? Uma coisa complexa, diz ele. Uma menina que eu tô investindo há muito tempo. O problema é a falta de coragem.
O analista foi incisivo, deu valor à palavra de Cristóvão e fez desse aspecto um ponto de trabalho para o próximo tempo de análise. Você deu mostras de ousadia. Conquistou a aprovação em um concurso disputado. Agora é preciso trabalhar a covardia, versus a ousadia frente ao amor – pontuou Jorge Forbes.
Estar ligado aos amigos, sustentar o lugar conquistado e ousar uma mulher, são os itens da sua lista. Se não há uma análise igual à outra é porque a direção que se deve dar a cada tratamento é singular, encontrada no embaraço que cada pessoa traz. Inicialmente, Cristóvão vivia uma disjunção do seu pensamento com o seu corpo. Refletida na postura de negação dos sinais da doença no seu corpo e na forma equivocada de perceber-se a si mesmo e o outro. Agora, uma vez incorporada a doença, descobre que a passividade não é a melhor resposta. Mobilizado no desejo, quer arriscar-se, viver uma paixão.
Liége Lise é psicanalista, membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana. IPLA –São Paulo.
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