Marcelo Veras
Abertura em Epílogo do livro Ruídos e Silêncios da Vida Confinada publicado pela LDM editora
Passo os dias lendo o branco entre as linhas. Fico atento aos ruídos da comunicação, os imbróglios do sexo, das relações familiares, aprendendo a ouvir a eloquência dos silêncios e das vozes hesitantes. É bem isto o inconsciente, um manancial de mensagens erráticas que buscam um destinatário. São mensagens que nunca entram pela porta da frente, elas chegam pela porta dos fundos, pelo ralo da pia ou mesmo pela fresta na parede de onde saem as baratas. O hábito de ser analista não cessa quando trancamos a porta do consultório no final do dia, ele nos acompanha nos circuitos da vida, no trânsito das ruas e no trânsito dos dados das redes. Trata-se, portanto, de um esforço para escrever o indizível, ler entrelinhas e tentar vislumbrar o invisível em um mundo tomado pela vertigem das redes sociais e das fake news. Um mundo em que tudo pode ser dito, pouco importando se é verdadeiro ou falso.
O mundo baseado em evidências foi amplificado e distorcido pelo império das imagens, sobretudo na última década. Tornamo-nos todos adictos do olhar. Somos vistos por câmeras e passamos a maior parte do dia diante de telas, uma nova perspectiva para algo que James Joyce em seu Ulisses havia chamado de inelutável modalidade do visível. A crença de que tudo pode ser visto fez com que o visível se tornasse equivalente à verdade. Falei um pouco disso em meu último livro, Selfie, logo existo.
Contudo, quando falamos de inconsciente a situação é outra. A escrita do inconsciente nunca encontrará uma palavra certa, ela irá sempre errar a verdade, não por ser fake intencionalmente, mas porque a loucura do inconsciente faz com que o sentido sempre fracasse. O inconsciente não é baseado em evidências, não podemos olhar para o lado e dizer “olha o inconsciente ali!”. Não que as evidências não existam e sejam fundamentais para o bom senso das coisas, mas prefiro deixá-las para a ciência pura. O inconsciente flui dos lapsos da vida consciente. Foi esta a justificativa que me dei quando decidi não mandar este texto para um revisor antes de publicá-lo, resolvi deixar os erros gramaticais e de digitação. É um pouco como me mostrar sem filtros, mesmo sabendo que não existe a possibilidade de se mostrar completamente nu. Acontece que alguns textos foram escritos no meio da noite, com sono, outros após a surpresa de um evento lido nos jornais da manhã, alguns textos apressados, outros difíceis de sair, como um bebê se recusando a nascer, ficam então os furos de minha escrita.
Quando este livro começou? Ele começa pelo epílogo de uma era. Tudo mudou naquela noite de 2 de setembro de 2018. Chegava do consultório, como sempre por volta de oito da noite, e não tinha visto durante o dia nada do mundo. Ao entrar em casa, vejo na televisão o Museu Nacional completamente devorado pelas chamas. Ali, passados os dez segundos iniciais, percebi que algo terrível estava acontecendo, o Brasil perdia sua memória, e sem memória o futuro do Brasil começou a caminhar em direção a um abismo de crenças. Minha insônia começou um pouco antes da insônia do mundo. Mas esta viria para nos acompanhar por um bom tempo.
Deve ser um pouco pretencioso falar da insônia do mundo sem que tivesse dado a volta ao mundo. Mas é que o mundo ficou tão próximo, visto nas imagens, gráficos e animações dos noticiários, que quase podemos segurá-lo com as mãos. Na minha desolação ao ver o Museu em chamas, o Brasil ardendo bem na minha frente dava vontade de pegar o extintor do meu prédio e despejá-lo na televisão, mas o virtual ainda não produz esses milagres. Mas, quem disse que o virtual não modifica os ambientes reais? De repente os sons ficaram diferentes. O ar, um pouco mais denso, me fez forçar os músculos intercostais. Tudo foi sutil, mas nem tão sutil assim. Não sabia ainda que o ar faltaria ao pulmão de tantos brasileiros. As músicas da vida passaram a apresentar um estranho ruído.
Tem uma cena no filme A loucura entre nós, que foi inspirado no meu livro homônimo, que é premonitória dos anos seguintes. Em pleno hospital psiquiátrico – estamos em 2015 – no tumulto dos corredores lotados, um paciente bate continência e começa a marchar cantando o hino nacional. Aos poucos ele puxa um cortejo com outros pacientes que passam a cantar com ele. Um Brasil delirante que levaria ao golpe de 2016 estava ali retratado. Essa cena nos faz lembrar da célebre frase de G.K. Chesterton: O louco perdeu tudo, menos a razão.
Uma fumaça espessa passou a cobrir os céus. O céu do índio na Amazônia, das aves no pantanal, do músico, o céu do artista, dos professores de filosofia, dos professores em geral. O estudante negro havia conseguido sair de seu quilombo, ganhou lugar na faculdade, mas o preto da sombra espessa o lembrou que ele também é uma mancha entre os doutores brancos, sua bolsa foi cortada, ele volta pra casa sem diploma. Um ministro da educação toma posse e expõe seu inconsciente a céu aberto, estudantes são reduzidos a uma caixinha de chocolates.
Começo o livro com textos de 2017, nos meses do amargo despertar após o impeachment de Dilma Rousseff. Antes um pouco do incêndio do museu. E vieram as eleições de 2018. Um Brasil diferente passou a ser escutado pelos psicanalistas. Não apenas no divã, pois faz tempo que a psicanálise é maior do que os consultórios. Pra tudo que é canto, onde alguém foi mordido pela psicanálise, a escuta busca as notas dissonantes. Algo grande e significativo estava por vir, mas não sabíamos ainda. E assim ocorreu o pior dos cenários, o vírus Sars-CoV-2 foi despejado em uma gigantesca incubadora negacionista.
Tornou-se impossível ler ou assistir os jornais sem uma apreensão. Quando leio jornais, não procuro a verdade – se- quer garanto pra mim mesmo que ela exista – mas tento, como psicanalista aplicado, ler os sintomas no mundo. Estes são a marca do que fracassa do encontro dos corpos com a cultura. Palavra e corpo não fazem um casamento feliz, nunca há palavras para dizer tudo que somos. Somos seres muito aquém dos ideais civilizatórios que se espera de nós. Existem os fatos, os corpos e, da impossível conexão política entre ambos, surgem restos que são o material privilegiado da escuta analítica. Contudo, esse impossível não deve ser visto com pessimismo, por isso Freud evoca Voltaire e seu Cândido, ensaio sobre o otimismo, para nos oferecer uma perspectiva para o mal-estar da civilização.
Escolhi ordenar os textos como um caderno de registros do cotidiano, como algo que escorre entre o café da manhã com as notícias da TV e o jornal da noite. Fica mais adequado para falar de notícias de incêndio. E o Brasil entrou em chamas. 2020 encerra o ano como o ano com o maior número de queimadas em uma década. Desde a série histórica, iniciada em 1998, o Pantanal registrou o maior número de focos de incêndio. O museu foi só o pavio.
E chegou o vírus, aos poucos ele surgiu nos jornais, nas falas de alguns pacientes, de gente que havia passado o carnaval na Europa, até que subitamente todas as questões foram subvertidas de modo irreversível e incontornável por significantes novos. O vírus virou palavra falada aqui. Isolamento social, máscaras, oxigênio, UTI’s, mortes, separações, negacionismo, uma torção se fez e tudo passou a girar em torno de um ser que sequer é vida. Essa foi uma das descobertas que fiz, o vírus não é verdadeiramente um ser vivo. Ele não fazia parte nem da lista dos que embarcaram, nem na lista dos que perderam a arca de Noé.
A pandemia entrou em nossas vidas com o roteiro já escrito por Hollywood. Desde a moda dos disaster movies dos anos 70, não há um ano que a terra não seja destruída por cometas, terremotos, vírus e zumbis. Sem uma narrativa própria do horror, iniciamos a pandemia projetando nossos piores pesadelos no mundo existente no outro lado porta. Rapidamente muitos hábitos mudaram, as casas passaram a ter suas portas manchadas pelo álcool e água sanitária, houve um boom dos serviços delivery e das vendas de produtos para home office. As redes sociais também mudaram. As selfies desapareceram, passamos ao mundo das lives, novo modo de mostrar que o corpo ainda está vivo. Custou um tempo para compreender que teríamos que inventar nosso próprio fim de mundo, sem trilhas sonoras, sem letreiros no fim, nem grandes heróis.
Boa parte desse livro é dedicada a escrita de um roteiro cotidiano desse novo mundo, um mundo que ainda recolhe os efeitos horríveis do encontro de um governo negacionista com uma doença altamente letal. Não pude escapar do método de escrever meu próprio diário da pandemia, com minhas adaptações ao mundo virtual, os textos produzidos na insônia e as histórias que ouvia, muitas delas da boca de meus pacientes. Escrever, no momento atual, mais do que nunca, significa para mim duas coisas: dizer que ainda estou vivo e que a psicanálise também deve escutar o barulho das ruas, e os seus silêncios.
Marcelo Veras é Psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise, autor dos livros A loucura entre nós e Selfie, logo existo