Publicado nas Lettres de l’École freudienne em 1976, nº 18. Dia dos cartéis. Estrasburgo. Introdução às sessões de trabalho.
MARCEL RITTER. – É uma pergunta que me ocorreu esta manhã, mas que também está ligada a preocupações teóricas pessoais. Falou-se esta manhã de certas palavras que começam com “Un”: o Unbewusste (inconsciente), o Unheimlich (o sinistro). Isso me fez pensar no Unerkannte (não reconhecido) que encontramos em Freud, especialmente em “A Interpretação dos Sonhos”, onde é traduzido erroneamente como “desconhecido”, quando na verdade é o “não reconhecido”.
Encontramos esse Unerkannte articulado com a questão do umbigo do sonho. O umbigo é o ponto em que o sonho, como Freud disse, é insondável, ou seja, o ponto onde, em suma, o sentido ou qualquer possibilidade de sentido termina. Também é o ponto em que o sonho está mais próximo do Unerkannte, do não reconhecido. Freud diz: “Er sitzt ihm auf”, traduzido literalmente como “ele está sentado nele”, como um cavaleiro montado em seu cavalo. Mas ele acrescenta que desse ponto surge um novelo de pensamentos que não conseguimos desenrolar, mas que esse novelo de pensamentos não contribuiu para o conteúdo do sonho, ou seja, para o texto manifesto. Em outras palavras, parece ser um ponto em que a condensação falha, no sentido de que é um ponto que está conectado apenas por um único fio ou elemento ao conteúdo manifesto, um ponto de falha na rede.
Então, a pergunta que me faço é se esse Unerkannte, esse não reconhecido, indicado por esse novelo de pensamentos, não poderia ser visto como o real, um real não simbolizado, algo diante do qual, no final das contas, o sonho como rede, não é, não é, não pode ir além. E então também me pergunto, de que real estamos falando? É o real pulsional? E também as relações desse real com o desejo, já que Freud articula a questão do umbigo com o desejo, já que é o lugar onde o desejo surge como um cogumelo.
JACQUES LACAN. – Não é, eu dou minha resposta atual. Isso é tudo o que posso dizer, é que cheguei a isso. Não acho que seja o real pulsional. É difícil fazer entender, não posso retraçar todo o caminho pelo qual cheguei a isso no momento. Duvido muito que algo me force a uma outra concepção. Estou mais inclinado a ouvir você falar sobre o real pulsional. Estou impressionado, felizmente, porque é verdade que há um real pulsional. Mas há um real pulsional apenas na medida em que o real é o que na pulsão eu reduzo à função do buraco. Ou seja, o que faz com que a pulsão esteja ligada aos orifícios corporais. Penso que todos aqui se lembram que Freud caracteriza a pulsão pela função do orifício do corpo. Ele parte de uma espécie de ideia, da constância do que passa por esse orifício. Essa constância é sem dúvida um elemento do real. Tentei até representá-la por algo matemático, o que na matemática é definido como uma constante rotacional, que é apropriado para nos indicar que se trata do que se especifica na borda do buraco.
(8) Acredito que devemos distinguir o que acontece nesse nível do orifício corporal daquilo que funciona no inconsciente. Acredito que, no inconsciente também, algo é totalmente análogo. Acredito que o que Freud chama de Urverdrängt (reprimido primordial), o que ele expressamente designa em outro lugar, é o que está em jogo, é o que ele chama, a expressão que ele usa em outros lugares, o Urverdrängt, o reprimido primordial (foi traduzido como pôde). Acredito que está no destino do reprimido primordial, isto é, algo que não pode ser dito em nenhum caso, seja qual for a abordagem, está enraizado na linguagem de tal forma que podemos dar a melhor ideia do que se trata. Nenhum campo da linguagem, mesmo que seja a linguagem analítica, atinge esse real. É algo para o qual a sessão de análise fornece material.
A relação desse Urverdrängt, desse recalcado originário, uma vez que foi levantada uma questão sobre a origem anteriormente, acredito que é isso que Freud está retomando em relação ao que foi traduzido de forma bastante literal como umbigo do sonho. É um buraco, é algo que é a fronteira da análise; obviamente tem algo a ver com o real, um real perfeitamente nomeável, nomeável de uma maneira que é um fato puro; não é à toa que ele coloca em jogo a função do umbigo.
É de fato a um umbigo específico, o da mãe, que alguém se encontrou suspenso, reproduzindo-o, por assim dizer, através da seção do cordão umbilical. É claro que ele não está suspenso ao umbigo de sua mãe, mas sim a sua placenta. É devido ao fato de ter nascido desse útero e não de outro que um certo ser falante, ou o que chamo por enquanto, o que denomino pelo nome de Parlêtre, o que é uma outra designação do inconsciente, é de fato ter nascido de um ser que o desejou ou não desejou, mas que, por esse simples fato, o situa de certa forma na linguagem. Um Parlêtre é excluído de sua própria origem, e a audácia de Freud nesse caso é simplesmente dizer que temos em algum lugar a marca disso no próprio sonho. O sujeito, por meio de suas produções imaginativas – não esqueçamos a condição da Darstellbarkeit, que é tão importante na formação do sonho –, essa representacionalidade, por assim dizer, o fato de poder se representar no sonho, mantém a marca de algum ponto onde não há nada a fazer. Esse é exatamente o ponto de onde sai o fio, mas esse ponto também está fechado assim como está fechado o fato de ter nascido nesse útero e não em outro. No próprio sonho, há o estigma, já que o umbigo é um estigma. É um estigma pelo qual ele tem algo em comum com tudo o que foi gerado nesse modo vivíparo, mas com a diferença de que se trata de um ser placentário, e esse ser placentário mantém um rastro que é assinado no próprio nível da simbolização. Certamente, apenas o Parlêtre, o ser falante, pode chegar à noção de onde parti em relação ao inconsciente. Há algo que não é por acaso que isso se resuma a uma cicatriz, a um ponto do corpo que forma um nó, e esse nó é pontuado, não exatamente no seu lugar, é claro, pois há aqui o mesmo deslocamento que está ligado à função e ao campo da fala.
No campo da fala, há algo que é impossível de reconhecer, de modo que o “Un” tem outro valor aqui do que o que lhe demos esta manhã. O “Un” designa propriamente a impossibilidade, o limite. Quando falávamos do impoético, é o fundo sobre o qual o poético ocorre. Quando falamos do “Unerkannt”, significa o impossível de reconhecer. Não é apenas uma questão de fato, é uma questão de impossibilidade. É nisso que o que estávamos tentando abordar esta manhã em relação à ambiguidade do “Un” envolve obviamente dois polos, e um desses polos não alcançamos esta manhã.
O “Unerkannt” é o impossível de reconhecer. Freud não destaca isso na passagem sobre o umbigo do sonho. É apenas em outros lugares que temos a noção do recalcado primordial. Mas mesmo a noção de recalcado primordial, na forma em que é dada, não enfatiza essa função da impossibilidade. É o sentido do “Un” no termo que em alemão designa o impossível, é o “Unmöglich” do que se trata, isso não pode ser dito nem escrito. Isso não deixa de não ser escrito. É uma espécie de negação duplicada, que é aquela pela qual podemos nos aproximar desse uso completamente radical da negação. Quando digo que isso não deixa de não ser escrito, é aí que entra esse tipo de nebulosidade, de nebulosidade que resulta disso, ou seja, a única maneira de definir propriamente o possível seria dizer que o possível (9) deixa de ser escrito, é a única maneira realmente estabelecida de abordá-lo de perto. É precisamente a distância entre as duas negações. Não é “não deixa de não ser escrito”, o que, devido ao efeito que normalmente atribuímos à dupla negação, se limitaria a dizer que isso deixa de ser escrito. Mas o “não deixa de não ser escrito” é o que me parece o sentido do “Unerkannt” como “Urverdrängt”. Não há mais a ser extraído disso. É exatamente isso que Freud está se referindo ao falar sobre o umbigo do sonho. É aí que perdemos o fio. Não há maneira de puxar mais essa corda, a menos que a rompamos. Portanto, isso se refere a uma analogia, completamente análoga ao que você acabou de descrever como real pulsional.
Estou certo disso completamente? Vamos dizer que eu faço uma analogia. É aqui que a fronteira é revelada, através da qual o simbólico é de certa forma repercutido, que haja algo que, no dizível, seja por metáfora comparável à pulsão. No entanto, é também aqui que a pulsão se torna completamente opaca, que ela se identifica com algo mais, já que aqui se trata do que poderíamos chamar de essência do nó. No nível do simbólico, aqui, está amarrado, não mais na forma de um orifício, mas sim de um fechamento. Comparar esse fechamento a um buraco é obviamente algo diante do qual o pensamento se detém. Não é fácil, se associarmos a palavra “umbigo” à presença de um nó corporal, não é fácil, exceto pelo fato de que o que esse nó fechou é algo através do qual, durante um período considerável – nove meses – toda a vida foi gerada. Isso é o que permite a analogia entre esse nó e o orifício. É um orifício que foi fechado.
No estado atual das coisas, eu acho isso significativo, talvez aqui seja possível admitir uma revisão, uma revisão possível, é que, em última análise, durante essa batida entre o orifício e o nó, entre a identificação do buraco a um ponto amarrado, é isso que, por assim dizer, me abriu caminho para a fórmula que estou apresentando como especificamente característica desse ser que descrevemos como tendo a fala, que me permiti avançar com isso é que, no nível de seu real, que é o terceiro termo aqui, ao contrário do que se pode acreditar, é justamente como formando imagens, ou seja, totalmente imaginário, que o corpo persiste.
Falando de imaginário, simbólico e real, uma vez que foi daí que parti, estou voltando para dizer que o real também se especifica por meio de um “Un”, no sentido de um impossível. Isso deve ser demonstrável, e toda a experiência analítica não faz nada além de convergir para demonstrá-lo. É demonstrável que a relação como tal entre os dois parceiros sexualmente especificados, mas radicalmente diferentes, é precisamente marcada pelo fato de que sua relação com o sexo é de certa forma uma relação parassexual. E por mais que possamos enfatizar a bissexualidade, como Freud fez, é realmente afirmar que a identificação do sujeito com ambos os sexos é algo que acontece apenas secundariamente e por meio de uma adaptação, e que resulta de algo mais fundamental, que poderia ser exatamente correlato ao fato de que esse ser, entre todos os seres, é falante.
No entanto, ainda não estamos muito mais avançados. Isso pode ser apenas um preenchimento temporário. Afinal, a demonstração é algo que exige um certo rigor. A experiência já testemunha isso, como indiquei brevemente esta manhã em relação ao que chamamos de pulsão, que é algo que deixa completamente aberta a formulação da relação sexual entre um sexo como tal e outro. Parece bastante evidente em nossa experiência cotidiana que essa seja a questão que mais enfrenta obstáculos: escrever um x e um y que seriam o sexo masculino e o feminino propriamente falando, é algo que claramente não conseguimos fazer. Há uma relação com o Falo que introduz um terceiro irredutível. No entanto, não se deve acreditar, como Freud talvez tenha sugerido com um pouco de imprudência, que essa relação com o Falo seja o próprio Falo. Quando digo Falo, não estou me referindo à mesma coisa que o órgão que tem, especialmente no Parlêtre, uma importância predominante. Não é que ele não o demonstre em outros contextos, embora absolutamente não saibamos o que é a experiência de cópula em animais tão distantes como sapos ou rãs, em que a cópula de fato possui um caráter muito marcante.
No entanto, parece que a noção que Freud não destacou sem razão como a função fálica, introduz de forma irredutível no Parlêtre, na relação entre os sexos, um terceiro, cuja importância não é menor em uma mulher, como eu gostaria de expressar. Pois eu facilmente afirmo que a mulher não é universalizável, que não há uma Mulher totalmente específica da universalidade, há apenas mulheres, digamos, individuais, mas isso também pode ser uma afirmação excessiva, já que o individual está profundamente ligado ao universal. O que estou tentando desenvolver agora e que mencionei em meu seminário mais recente é que, para o homem, uma mulher é sempre um sintoma. Obviamente, isso é difícil de engolir, e não foi sem cuidado ou hesitação que afirmei isso. Após isso, recebi feedback, reflexões, e tive a satisfação de ver que, na verdade, é mútuo. Devo dizer que isso me aliviou um pouco, depois de afirmar que uma mulher, na relação que ela tem com o Homem, é um sintoma, recebi a confirmação de que justamente em algumas mulheres, e não em todas, aquelas em que esse terceiro fálico ressoa particularmente, essas mulheres, após o meu seminário, me disseram que era exatamente a mesma fórmula que lhes veio à mente quando não exatamente o Homem, porque a noção do Homem, como tal, não é tão presente para uma mulher – pelo fato de serem mulheres, também são homens – e tive esse testemunho de que elas haviam formulado para si mesmas por que amavam tal pessoa: é um sintoma. Elas ouviram, por assim dizer, o que estava acontecendo como algo relacionado a um sintoma.
Certamente, isso me incentivou muito a tentar ser mais preciso com o que avancei com muita dificuldade, até com timidez. Não acredito, e isso se deve à falta de referência à Mulher, porque a Mulher universalmente não existe, que o sintoma-Homem tenha exatamente o mesmo lugar para uma mulher. Mas isso vai muito longe. Isso implica, como tudo o que está relacionado a sintomas, todo o inconsciente. É perfeitamente concebível que a relação de uma mulher com o inconsciente seja diferenciável da relação de um homem com o inconsciente. Aliás, isso explicaria muitas coisas. Se o inconsciente estiver menos intimamente entrelaçado com a realidade de uma mulher do que com a de um homem, o que, é preciso dizer, é perceptível, isso explicaria por que ela o compreende muito melhor. E estou me referindo a uma mulher. É um fato que as mulheres, que existem em plural, são em geral mais hábeis em falar do inconsciente de maneira eficaz do que a média dos homens. Se o homem levou tanto tempo para descobrir o inconsciente, para perceber que o fato de habitar a linguagem deixa marcas, para que demoremos tanto para reconhecer as consequências de nascer falante, e de dois seres específicos através dos quais o Parlêtre é transmitido com duas funções totalmente diferentes, a do pai e da mãe, tudo o que Freud destacou, para demorarmos tanto a reconhecer que o ser humano se insere em um mundo de linguagem e que o fato de serem seus pais, com tudo o que isso implica por trás, particularmente se ele foi desejado ou não desejado, que sejam seus pais a orientá-lo… – Eu estava lendo um pequeno livro de Kant: Como Orientar-se no Pensamento? Mas essa não é a questão. Não se trata de orientar-se no pensamento. Trata-se de orientar-se na linguagem, e que o ser humano esteja em um campo já constituído pelos pais em relação à linguagem, é precisamente a partir disso que devemos considerar sua relação com o inconsciente, e que essa relação com o inconsciente não há motivo algum para não a concebermos como Freud a concebe: que ela tem um umbigo. Ou seja, que há coisas que estão para sempre fechadas em seu inconsciente, o que não impede, no entanto, que isso se manifeste como um buraco, não reconhecido, Unerkannt, conforme você apontou anteriormente.
Peço desculpas por ter sido tão longo, mas é preciso dizer que a pergunta que você levantou exigia, parece-me, pelo menos isso para ser respondida, já que é, de fato, uma pergunta que é a expressão verbal do que, desde o início, na própria compreensão do Inconsciente, há a noção de que aquilo que o compõe, aquilo que o torna propriamente falando o Real, é um ponto de opacidade. É um ponto de intransponibilidade, é um ponto de impossibilidade. E é por isso que a noção de impossível me parece estar no centro de tudo isso, e de uma certa impossibilidade que é coerente, que permitiria especificar na cadeia dos seres, como Freud enfatizou, que permitiria especificar o ser humano como sendo, não o ápice da criação, o ponto de despertar do conhecimento, mas sim o lugar de uma outra Unerkennung especial, ou seja, não apenas uma não-reconhecimento, mas uma impossibilidade de conhecer o que diz respeito ao sexo.
Isso nos permitiria esclarecer isso (embora nos levasse muito longe), que algo que a abordagem científica reconheceu na vida é a coerência entre sexo e morte. Não se pode dizer que essa não-relação sexual, que considero fundamental no real para o Parlêtre, não corresponda a um pequeno despertar em relação à universalidade da morte. Há um pequeno despertar, mas um despertar também muito limitado no final das contas. Dizer que todo homem é mortal não significa necessariamente que haja prevalência da morte. O fato de a morte ser tão bem tamponada na vivência, pela vida, na experiência de cada um, é algo bastante marcante. Mas que seja através do caminho do inconsciente que alguém tenha sido capaz de falar sobre a pulsão de morte, ou seja, algo que tem uma relação com a morte, mas de maneira aproximadamente semelhante à sua relação com o sexo; há uma relação com o sexo no sentido de que o sexo está em todo lugar onde não deveria estar; não há, em lugar algum, a possibilidade de se estabelecer, de alguma forma formulável, a relação entre os sexos. Pode-se dizer a mesma coisa em relação à pulsão de morte: é também uma relação com a morte, mas deslocada também. Não é porque está deslocada que de vez em quando não consegue abrir caminho, mas o mesmo vale para a relação com o sexo. É dispersa, é espalhada em vez de ser bem contida; da mesma forma, essa pulsão de morte, que Freud, é preciso dizer, foi levado a considerar pela experiência analítica, é onde o inconsciente, o inconsciente como tal, é algo que é importante distinguir desse não-relação sexual, na medida em que esse não-relação sexual estaria ligado ao Real do ser humano, enquanto é no nível do simbólico que essa descoberta de uma certa relação com a morte é perceptível e percorreu, de fato, o caminho pelas palavras de Freud. Há aqui uma espécie de dissociação da relação sexual, da qual é, no entanto, concebível que algo deixe uma marca no inconsciente, enquanto o que é demonstrado por tudo o que Freud descobriu é justamente que tudo o que está relacionado ao sexual é deslocado.
Como eu disse esta manhã, o que é genital está no domínio do mito, e é o mesmo mito ao qual a religião está ligada, o genital é o que leva à reprodução. Mas o que leva ao encontro dos sexos para essa reprodução? É justamente o que permanece aberto, o que permanece particularmente aberto nas pessoas que têm um inconsciente, isso é um fato.
Ninguém me interrompeu, e Deus sabe onde isso teria me levado, para me perguntar o que era a pulsão sado-masoquista, sobre a qual Freud fala muito. É bastante curioso que, para dar um nome a isso, nunca tenhamos falado sobre sado-masoquismo antes de Sade e de Sacher Masoch. É realmente curioso que nunca tenhamos avançado nada semelhante, que tenhamos que esperar que dois escritores, aliás, ambos com deficiência mental absoluta, para começar a perceber que não existe apenas a pulsão sado-masoquista, mas que isso é fundamental na realidade humana, que não tenhamos percebido que o desejo do homem é o inferno.
Eu disse isso uma vez a um padre. Como sou eu quem está falando, naturalmente vi o padre se encolher. Quero dizer, ele estava lá como um tapete. O desejo do homem é o inferno, é óbvio desde o momento em que o digo, e estou dizendo isso pela primeira vez hoje diante de vocês, porque nunca tive a coragem de dizer isso antes, exceto para este padre. É preciso dizer algo que me conforta, porque devo pelo menos me dizer que não é apenas porque sou Lacan que posso expressar certas verdades. Essa verdade é óbvia. E me conforta: esse padre era dantista, não dentista, ele se ocupava de Dante, e em Dante é evidente que ninguém se interessa pelo paraíso. O que ele conta sobre o paraíso, no entanto, é muito interessante também. No entanto, ninguém quer ler. Graças ao fato de esse padre ser dantista, posso me consolar. Não é apenas porque eu disse a ele que ele disse sim, sim… Bem, isso eu ainda não disse no meu seminário.
Então, vocês veem, isso significa que eu me sinto à vontade aqui, ninguém me faz perguntas tolas. Rendo homenagem a Marcel Ritter por ter me feito essa pergunta sobre o “Unerkannt”. Isso me levou um pouco longe, peço desculpas. Era óbvio, era forçado que isso me levasse. É preciso dizer que é necessário dizer muitas coisas para tornar isso sustentável. Já para responder à pessoa que me fez a pergunta sobre a origem do desejo. Fechamos o círculo assim. Aliás, é por isso que Freud começou sua “Interpretação dos Sonhos” com a fórmula que vocês conhecem: “Se não posso mover os deuses, passarei pelo -” por quê, “pelo inferno”, exatamente. Se há algo que Freud tornou evidente, é que do inconsciente decorre que o desejo do homem é o inferno e que essa é a única maneira de entender algo. É por isso que não há religião que não reserve um lugar para ele. Não desejar o inferno é uma forma de resistência, é a resistência.