Realmente divertido: Animação nas telas e em quem assiste 02/07/2015

Por Claudia Riolfi

A garota sucumbe porque não conseguiu fazer o luto da criança ideal que ela teria sido aos olhos do Outro. Insiste em persistir no lugar de “princesinha” que lhe foi atribuído por seus pais

Pete Docter, cineasta e pai, levou cinco anos para metabolizar as mudanças de humor de sua filha de 11 anos. Na ocasião, cinco anos atrás, pediu ajuda aos universitários. Iniciou uma pesquisa com neurologistas e psicólogos para entender o funcionamento do cérebro. Levou três anos para transformar os resultados dessa investigação em um roteiro simples o suficiente para ser entendido por pessoas de todas as idades. Conseguiu. Divertida Mente, o novo filme da Pixar (em cartaz), está sendo sucesso de bilheteria e de crítica. Como a animação de Docter nos interpreta?

Pete está muito além do raciocínio causalista que costuma marcar filmes que se querem psicológicos. Sabe que o ser humano não é resultado direto do que viveu. Mostra que, para nós, o que conta é a interpretação dada por cada um ao vivido. Os eventos do dia a dia da criança estão lá, mas funcionam como uma espécie de cenário para o que realmente interessa: as emoções da menina.

O pano de fundo é simples. Provavelmente por um revés financeiro, um casal é obrigado a mudar de cidade com sua filha de 11 anos. Não tem o cuidado de discutir com ela a situação e, por esse motivo, a menina é surpreendida com uma casa pior e com a perda de seus prazeres infantis. Enraivecida, tenta fugir de casa para voltar para sua cidade de origem. Durante o processo de planejamento da fuga, a depressão se instala e ela perde o acesso à libido. Quando está dentro do ônibus, se dá conta da temeridade de seu comportamento e volta para casa. E só.

O fascinante, entretanto, não está nessa camada da narrativa, mas, sim, no que se passa dentro da mente da garota. Nessa vertente da história, acompanhamos o desenvolvimento do cérebro de uma criança desde o nascimento até a puberdade. É aí que podemos aprender importantes lições.

A menina é vítima da depressão por um erro simples: ela quer, a todo custo, evitar a tristeza. Tenta viver como se o universo fosse um playground livre dos fracassos e das frustrações. A cada vez que a realidade se mostra diferente, ao invés de tentar fazer os devidos enfrentamentos com suas questões, ela se recolhe no mundo imaginário. Tenta, a todo custo, usar de artifícios variados para que a tristeza não marque qualquer de suas memórias de infância, todas idealizadas.

Em outras palavras, a garota sucumbe porque não conseguiu fazer o luto da criança ideal que ela teria sido aos olhos do Outro. Insiste em persistir no lugar de “princesinha” que lhe foi atribuído por seus pais e, caso qualquer coisa saia do script, recorre à raiva, ao medo e ao nojo. Fecha-se, cada vez mais, em suas defesas narcísicas.

O ponto de virada começa na fábrica dos sonhos, personificação do inconsciente simbólico. Percebendo a inutilidade de usar “o trem do pensamento” quando uma pessoa está desgovernada, alguns personagens tomam o atalho do inconsciente e acabam parando em uma parte do cérebro que é disforme, pouco discriminada, opaca. Não me parece exagero dizer que se trata do inconsciente Real. É nessa instância que é encontrado um elemento capaz de, em todos os sentidos, acordar a menina e fazer com que ela restabeleça seus laços.

Se você ainda não assistiu, não perca. Uma verdadeira lição a respeito da segunda clínica de Jacques Lacan. 

Claudia Riolfi é Psicanalista e Professora Livre-docente da Universidade de São Paulo.