Questões éticas: a morte, como? 01/07/2021

Alain Mouzat

Na mitologia grega, as questões de morte estavam nas mãos de três fiandeiras Cloto (Κλωθώ) a fiandeira, Láquesis (Λάχεσις) que desenrola e dá seu quinhão a cada um, e Átropos (Ἄτροπος) a que corta o fio. As três estavam a fiar e a questão da morte pouco dizia respeito a questões de direito, eram mais questões de fé e de torcida. E de repente eis que estávamos todos a fiar: discutindo a imortalidade e a morte com Bauman, a eutanásia, a legislação na França com uma crônica de Luc ferry – e com Teresa Genesini comentando a tribuna de Luc Ferry. E, como sempre, cheio de cartas na manga, Jorge Forbes acrescenta um texto de 2008 do seu irmão Luiz Forbes: afinal, o quarto mandamento do decálogo do analista é chegar sem ser avisado, no lugar da surpresa ou da assombração.

Trata-se de um trabalho de Direito, não só no assunto e no modo de tratar, mas também na redação. A leitura foi muito agradável: aprendi um português que não conhecia, joias como nefelibata, jaez e quetais! Descobri e adorei a sabedoria da boneca Emília: “só não muda de ideia quem não as têm!”. Mas a alegria da leitura não pode esconder a dificuldade de sintetizar a elaboração do raciocínio jurídico desenvolvido no texto.

Vamos lá. O texto é um trabalho de final de Curso de pós-graduação da disciplina Bioética e Direito I, de 2008, que tem por título “A Recusa de Tratamento Médico: Um Direito Personalíssimo”.

Luiz Forbes, na primeira parte de sua exposição, vai sublinhar o que é para os juristas o direito personalíssimo, porque esses direitos são “categorias históricas surgidas no espaço social, em contínuo desenvolvimento.”

Eles não têm fundamento em qualquer “direito natural”.  Se sabemos que esses direitos fundamentais da pessoa são historicamente determinados, eles devem, portanto, ser adaptados para acompanhar a evolução da sociedade.  Os Direitos do homem, ou da pessoa humana, fazem parte desses direitos, e de certa forma constituem o menor denominador comum do entendimento do que seja uma democracia ocidental. Os direitos personalíssimos são então princípios historicamente convencionados, mas alçados à condição absoluta de princípios éticos.

Deve-se ser claro nesses princípios, particularmente no que tange à bioética. E Luiz Fobes elenca algumas pesquisas que foram apontadas pelos seus abusos:

Milgram e os experimentos com estudantes se comprazendo em dar choques em outros; a experiência de Stanford (parecida, mas com estudantes e prisioneiros – pesquisa aliás fajuta),  Humphrey e os tea rooms, (espionando práticas sexuais) etc…  e outras mais horríveis: os “doutores” do hospital anexo à Willowbrook State School, em Staten Island, Nova York, conseguiram essa proeza entre 1963 e 1966, quando desenvolveram a horrenda pesquisa intitulada Willowbrook Study (transmissão da hepatite a crianças de orfanato, provocada, pretextando que de  qualquer modo as crianças acabariam contraindo-a!). Mais uma:  a Tuskegee University foi enganada por 40 anos, de 1932 a 1972, pelo governo americano. Mais especificamente pelo U.S. Public Health Service, na pesquisa da sífilis em trabalhadores rurais – negros evidentemente – acompanhando a evolução da doença, sem oferecer tratamento.  (Clinton pediu perdão).

Etc…

Donde a necessidade de princípios éticos claramente afirmados.

Se fizermos a genealogia desses princípios éticos veremos, diz Luiz Forbes, que nascem dos processos dos médicos nazistas logo após a Segunda guerra mundial, dito Doctors´Trial[1]. Onde um médico – o Dr. Leo Alexander – psiquiatra e neurologista, nomeado perito americano, de origem judaica vienense – “elaborou o decálogo de deontologia médica chamado de Código de Nuremberg. Provavelmente a base informativa de toda a principiologia da bioética e do biodireito modernos. Primeiro texto a ter vocação universal, que será, ulteriormente, fonte de outros textos de bioética “ (Luiz Forbes).

O Decálogo – o do Dr. Alexander – encabeçado pelo “Primum non nocere” hipocrático, apresenta um elemento básico dessa elaboração, “o consentimento informado”: o paciente tem de ser informado do tratamento e dar seu aceite.

A obrigação do consentimento informado leva “logicamente”, diz Luiz Forbes, ao direito de recusa do tratamento.  Para não se deter em explicitar a lógica que alimenta essa passagem de um ao outro, Dr. Luiz parece chutar a bola para o outro campo – o da lógica paraconsistente – onde joga outro Forbes. Será acaso? Ou piscadela de conivência?

O resultado é claro: se aceitarmos a necessidade de “consentimento informado”, temos que inscrever nos direitos personalíssimos a “recusa do tratamento”, não mais por razão religiosa ou de objeção de consciência, mas simplesmente como corolário do “consentimento informado”, de um direito de livre escolha.

E reconhecer na possibilidade de recusa do tratamento, a possibilidade de ortotanásia. A ortotanásia portanto é “direito a” recusar o tratamento – rechaçando qualquer “obsessão terapêutica”-  e “direito de” receber cuidados paliativos que permitem evitar o sofrimento de uma doença terminal, por exemplo.

A “ortotanásia”, assim, parece proceder logicamente do direito personalíssimo de escolha a partir do “consentimento informado”, da possibilidade de “recusa do tratamento”, e do direito a receber cuidados paliativos. A ortotanásia deve consequentemente ser aceita e o argumento de Luiz Forbes vale a pena ser citado na íntegra:

Já a ortotanásia, que aceitamos, na maioria das vezes, como um direito do paciente terminal e um dever de seu médico, profissional da saúde, ou cuidador pessoal; uma providência cujo maior objetivo é deixar a natureza seguir o seu curso; esta sim, quase sempre decorre da recusa do tratamento médico; e da essência de tal direito pode ser inferida. Apesar de diferir dele por se constituir em ação, e não em uma omissão. Mas com a mesma exata ideia. Não a de provocar a morte, a de permitir que aconteça.

Reconhecemos aqui a posição de Luc Ferry: aceita-se a ortotanásia, mas não o suicídio assistido nem a eutanásia.  Porque são atos de dar a morte, uma escolha positiva, ativa da morte.

Me permitam agora convocar algumas reflexões minhas sobre o assunto:

Luiz Forbes tem total razão ao convocar os direitos personalíssimos: no caso, se trata mesmo de acompanhar mudanças societais e de saber se nós vamos incorporá-las, rejeitá-las ou deixá-las de molho, por medo, temor, precaução…

Quais mudanças societais? Nas últimas décadas, pelo menos desde meados do século XX, houve uma institucionalização da morte: hoje 70 % das mortes acontecem em meio hospitalar contra 30 %[2] em casa. A proporção simplesmente se inverteu em 60 anos.  A criação de unidades de cuidados paliativos e o desenvolvimento das tecnologias de tratamento mudou bastante as perspectivas (em termos de implementação o Brasil fica devendo. Mas, claro, vai chegar lá).

Das Moiras, à hora das NBICs: o poder de decisão mudou de campo? A genética periquito do realejo?  Com certeza não é desejável desejar morrer, mas já que se trata de preservar direitos, quero que me seja garantido o direito de morrer.

“Ora, a cada civilização corresponde um quadro dos direitos da personalidade, enriquecida esta com novas conquistas no plano da sensibilidade e do pensamento, graças ao progresso das ciências naturais e humanas.http://www.miguelreale.com.br/artigos/dirpers.htm

Nada mais é como dantes: TerraDois.

P. S. : Diz a minha mãe, 100 anos, e sem pressa ; «  Je voudrais bien passer de l’autre côté, mais j’attends qu’on m’ouvre la porte »


[1]  Em nota Luiz Forbes precisa:   Julgamento onde 20 dos 23 réus eram médicos de profissão, daí o apelido pelo qual se tornou conhecido, realizado em Nuremberg entre 09-12-46 e 20-08-47. O nome oficial do feito é United States v. Karl Brandt et al., e a reprodução dos microfilmes dos registros oficiais do processo estão disponíveis na Internet em http://www.archives.gov/research/captured-german-records/microfilm/m887.pdf, acessado em 24-07-08.

Eu acrescentaria que houve um forte adesão dos médicos ao  nazismo, em grande parte em razão das convicções ideológicas de uma medicina higienista, como explicado nesse artigo (em francês): https://www.cairn.info/revue-les-cahiers-de-la-shoah-2007-1-page-15.htm

Mas são tempos revolutos.

[2] O Brasil ficou no grupo 3A (sendo o 3A considerada uma classificação inferior a 3B), com outros 94 países. Para se ter uma ideia segundo relatório da The Economist Intelligence Unit de 2015, o Brasil está na 42ª colocação abaixo de países latino-americanos como Equador, Uruguai e Argentina e de países africanos como Uganda e África do Sul, mas à frente da Venezuela que se encontra na 45º.”).
https://portalhospitaisbrasil.com.br/os-cuidados-paliativos-no-brasil/