Quem tem medo de Lacan? 21/08/2014

Por Leda Guerra

Seu intencional, pouco traquejo pedagógico e a empolação de alguns de seus seguidores, que desconhecem a importância da simplicidade e passam a reproduzir um lacanês, esse sim, realmente assustador e adverso.

Tenho um jovem amigo psicanalista. Certa vez, motivada pelo seu declarado interesse pelos estudos, convidei-o a, junto comigo, ler Lacan, o psicanalista francês que nasceu em Paris em 1901 e morreu em 1981, depois de ter reinventando a psicanálise. Meu amigo, quase sem pensar, rejeitou abruptamente meu convite: não, Lacan não, Deus me livre! Essa reação me provocou a escrever algo que pudesse refletir um pouco mais a respeito da questão: quem tem medo de Lacan?

Seu estilo sofisticado e elegante, a conversa íntima com a filosofia, a literatura e as artes. Sua linguagem complexa fundamentada na lógica matemática, no estruturalismo e, de forma peculiar, na linguística de Ferdinand de Saussure e no estruturalismo de Lévi-Strauss para pensar uma nova psicanálise, faz com que seus textos sejam intelectualmente exigentes. Some-se a isso, seu intencional, pouco traquejo pedagógico e a empolação de alguns de seus seguidores, que desconhecem a importância da simplicidade e passam a reproduzir um lacanês, esse sim, realmente assustador e adverso.

Mas os medos que se tem de Lacan são históricos e, com certeza, vão além da dificuldade de compreender de modo imediato os seus conceitos, a sua clínica. Sim, o temor que se possa ter de Lacan é de outra ordem, até porque muitos psicanalistas lacanianos, na contramão de outros, escrevem e falam de forma bastante elucidativa, transmitindo a psicanálise ao grande público, sem comprometer o rigor do conteúdo.

Freud, em sua genialidade e fiel ao seu desejo, escutou o inconsciente e subverteu a maneira de pensar o ser humano. A psicanálise ganhou difusão no mundo e, após esse momento vigoroso, teve a adesão de outros psicanalistas, os quais, no entender de Lacan, fizeram revisões que fragilizaram os princípios freudianos. Lacan, então, escreveu o artigo “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, no qual afirma que o sentimento do analista não revela a verdade escondida do analisando. Nesse texto, propõe o retorno à leitura de Freud, à primazia da escuta do inconsciente e a prevalência do significante sobre o significado. Criticou o uso, pelos pós-freudianos, da contratransferência como recurso clínico e da técnica da maternagem.

A contenda deflagrada por Lacan a partir da década de 50 se deu quando percebeu que os psicanalistas pós-freudianos haviam colocado a psicanálise numa espécie de camisa de força, enrijecida em suas regras e distante daquilo que Freud havia proposto. Lacan, a partir da leitura da obra de Freud, abriu caminho para revisitar seus historiais clínicos, sendo o mais freudiano dos freudianos, mas acrescentando outras perspectivas contundentes e mais amplas que viriam a incomodar sobremaneira os seus colegas da InternationalPsychoanalyticalAssociation (IPA), instituição da qual fora “excomungado”, segundo ele próprio.

Lacan, obstinado, não cessou seu caminhar em sua elaboração clínica e, mais tarde, na década de 70, propôs uma nova práxis, antevendo as mudanças que ocorreriam no laço social. Ele afirma o declínio da função paterna, bem como a ineficiência do modelo edípico na condução de uma análise. No aforismo, O Outro não existe, antecipa a quebra dos padrões verticalizados que exigem uma nova clínica baseada no Real, naquilo que extrapola o sentido, razão pela qual surge a necessidade de rever a psicanálise para que ela não viesse a fenecer e para que ela voltasse a ter a pujança dos tempos de Freud. No texto Jacques Lacan, o analista do futuro, Jorge Forbes afirma que Lacan previu esses acontecimentos e deixou os instrumentos para tratá-los: Consequência, Responsabilidade e Novo Amor.

Em sua segunda clínica, Lacan passou a dar ênfase ao Real em lugar do simbólico, não só na palavra, mas no gesto do analista. Palavra que ressoa, gesto que surpreende. Palavra e gesto que minimizam o sentido, equivocam e emprestam consequência. Uma clínica que não mais explica, mas implica. E, por isso mesmo, tão temível para muitos. Uma clínica assentada nas demandas da pós-modernidade, para além do conforto da operacionalidade de uma clínica já sedimentada, praticada segundo regras dominadas, mas na maioria das vezes já não provocadora dos efeitos desejados. Afinal, há um futuro a ser inventado.

Leda Almeida Guerra é psicanalista, historiadora, doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco, com pós-doutorado em Psicologia Social pela Universidade Aberta de Lisboa/PT. É professora da Universidade Federal de Alagoas.