Quem se garante? 23/08/2018

Por Dorothee Rüdiger

Novamente, uma tragédia familiar, como tantas que ocorrem todos os dias, ganha notoriedade e choca. É o caso de um casal jovem, bonito e bem situado que não se entende. Briga.  A mulher é agredida pelo marido e, por motivos ainda não esclarecidos, se lança pela janela. O marido tenta arrumar a cena. Acaba por se entregar à justiça. Cometeu uma loucura, dizem os psiquiatras peritos da polícia técnica. Para os juristas, o marido torna-se, com isso, inimputável. Como em tantos, nos quais  assassinos e vítimas são parceiros, filhos ou parentes próximos  são pessoas íntimas, no caso da morte de Tatiane Spitzner, como nos de Susanne von Richthofen e do casal Nardoni, para citarmos  os dois mais notáveis de assassinato em família, uma questão não quer calar: quem está seguro em seu lar? Por que pessoas que, ao menos aparentemente, se amam, de repente se agridem e matam? Quem, afinal, se garante? Permanece, até hoje, um escândalo  dizer o que Sigmund Freud afirma: sendo humanos, somos todos perigosos. Freud não está só com essa afirmação. Foi formulada pelo filósofo Thomas Hobbes, no século XVII, quando desenvolve  sua filosofia do Estado: “O homem é o lobo do homem.”  Precisamos de um pacto social civilizatório para manter a agressividade humana sob controle. O que Hobbes diz, Freud endossa, quando descobre a pulsão de morte.   A civilização, diz Freud, nos protege não somente contra as intempéries da natureza, mas também de nós mesmos. No entanto, o controle tem um custo. Como somos obrigados a conter nossas pulsões que nos impelem à vida e à morte, sentimos, ao mesmo tempo amor e ódio pela civilização , razão de nosso mais profundo mal-estar existencial. 

A agressividade humana é um fato. Está presente em nossos laços sociais desde o berço. A libido, energia vital, é agressiva. Tem que ser. Precisamos, literalmente, tomar da vida o que necessitamos e o que nos dá satisfação. Quem vê um bebê pegar no peito da mãe para mamar, sabe do que se trata.  Necessitamos da agressividade para matar a fome. Ganhamos, de lambuja, prazer. Assim, não é de se estranhar, quando Freud diz, que uma certa agressividade faz parte da nossa sexualidade: para gozar do próprio corpo, é preciso provocar o outro  para o encontro, receber e dar prazer. Mas, onde estão os limites? O que é jogo sexual e o que é violência? A diferença está na postura  de um parceiro com o outro. Fazer o outro de objeto do desprezo, do abuso de poder, buscando prazer causando o sofrimento, gozando, enfim, com a dor do outro, é perverso.

Convivemos hoje  com  novos sintomas, dentre outros, como narra Jorge Forbes, a “ violência inusitada”. Embora a agressividade e a violência estejam presentes em todas as civilizações,  na nossa civilização pós-moderna os casos de “violência gratuita” , “sem sentido”, “além da conta”  se multiplicam.  Pessoas aparentemente normais experimentam momentos,  durante os quais irrompe a violência cega, surda e muda. Mocinhas bem comportadas tornam-se frias assassinas para depois voltarem “ao normal”. Pais de família, de repente,  realizam o que outros  só ameaçam fazer: “se você não parar, te mato!” 

Na nossa civilização globalizada cresce a sensação  de que nem tudo pode ser dito e resolvido. Diante daquilo que Jacques Lacan chama de “Real”, não é falando que a gente se entende.  Os amantes não se entendem.  Não há “discussão da relação” que dê conta da profunda diferença entre a maneira de ser masculina e feminina.  Homens costumam se dar bem  no mundo das  certezas e das necessidades, enquanto, de acordo com Lacan,  a uma mulher, por sua posição na civilização  é dado lidar melhor  com o inusitado.   Na globalização  somos chamados a tomar decisões  diante da incertezas, daquilo que (ainda)  está fora da civilização. Por isso, diz Jorge Forbes, que a globalização é feminina. Está com um pé fora de uma civilização que ainda está marcada pela lógica masculina, mas necessita ser reinventada.

Por outro lado, o jeito de estar fora da civilização  ainda dominada pelo masculino pode provocar reações de insegurança, de incompreensão, de hostilidade e de violência não somente no cenário político, como também  entre quatro paredes. O feminino valorizado pela civilização pós-moderna paradoxalmente anda de mãos dadas com a misoginia e o feminicídio.

Todas essas explicações psicanalíticas para lançar uma luz sobre os casos de violência em família não isentam, no entanto, ninguém de sua responsabilidade. Não é, porque como seres humanos abrigamos em nosso inconsciente uma agressividade latente, que podemos nos esquivar da nossa responsabilidade para com os outros . Se a responsabilidade jurídica abrange o mundo dentro de nosso alcance, a responsabilidade psicanalítica, como diz Jorge Forbes, abrange o mundo fora de nosso alcance.  Somos responsáveis, sim, pelos nossos atos e nossas posturas, mesmo que inconscientes. Só assim há saídas dos impasses afetivos e, porque não, de nossos impasses políticos, saídas essas, que os artistas encontram cantando o amor em verso e prosa.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo  

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