Por Emari Andrade
O professor é responsável por ajudar o aluno a sair da inércia para auxiliá-lo a ler com propriedade e a apreciar o trabalho estético feito por aqueles que, como Machado de Assis, construíram uma obra
“Descomplicar”, “tornar mais fácil” são as palavras de ordem de Patrícia Secco e sua equipe que, em junho deste ano, lançarão uma versão da obra “O Alienista”, de Machado de Assis, publicada em 1882. Como farão isso? Por meio de alterações sintáticas (deixando as frases na ordem direta) e lexicais. É o que está descrito no artigo “Escritora muda a obra de Machado de Assis para facilitar a leitura”, assinado por Chico Felitti, publicado na Folha de S. Paulo, em 04 de maio.
A matéria inicia com as palavras da autora Patrícia Secco, para quem “os jovens não gostam de Machado de Assis”, porque “os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas”. Diante do “problema” apresentado pela autora, ela apresenta a solução: “Eu simplifico isso”.
De onde vem o saber da escritora para deliberar o que os jovens gostam ou não gostam? Afirmar que os jovens não gostam de Machado de Assis é acreditar em um modelo de jovem que não lê ou quando faz é somente os livros de entretenimento. É acreditar que existe um gosto universal. Que? Um desserviço à humanidade.
Patrícia pensa que o termo “sagacidade” pode ser substituído por “esperteza” sem que o texto deixe de ser aquele assinado por Machado. No contexto da obra de Machado de Assis, a palavra “sagacidade” aparece quatro vezes na obra. É de suma importância. Trata-se de uma das características que distinguem a personagem principal, Simão Bacamarte. É por meio da sagacidade que ele se transforma em “o alienista”. Essa palavra não está aí atoa, tem função estética.
Promover o encontro do jovem com o trabalho estético com a linguagem não é algo automático, nem se restringe trocar as palavras supostamente desconhecidas por “sinônimos comuns”. Fazer isso é manter o jovem na ignorância. É promover a preguiça intelectual, ou, como colocado por Freud, desde 1895, é colaborar para que os jovens vivam sob o “princípio do prazer”, instância psíquica que conduz o homem a almejar o prazer completo e imediato, sem esforço. Na regência do princípio do prazer, a pessoa deixa de pensar, vive sob a lei do “menor esforço”.
Ora, se a lei natural do homem já é viver regido pelo princípio do prazer, por que buscar meios para alimentá-lo? Nesse ponto, o professor é justamente aquele responsável por ajudar o aluno a sair desse lugar de inércia para auxiliá-lo a ler com propriedade, a estudar os recursos linguísticos para conseguir apreciar o trabalho estético feito por aqueles que, como Machado de Assis, construíram uma obra.
Ao deformar o texto literário, substituindo os termos originais por “sinônimos comuns”, o projeto acaba por destituir o texto literário do lugar que o distingue. Na literatura, as palavras têm uma valor estético, diferente do sentido do dicionarizável. Como colocado por Riolfi et. al. no livro “Ensino de Língua portuguesa”, publicado em 2008, “a palavra literária nos atinge como puro gozo” (p. 81), atingindo sua morada no corpo de quem a lê.
Por tocar o corpo, a palavra literária pode ser usada com um dos antídotos do princípio do prazer. Se queremos formar bons leitores, não deixemos de fazer o trabalho necessário para isso nem, tampouco, poupemos nossos alunos do esforço (nem do gozo) necessário para que saiam da ignorância.
Emari Andrade é professora de língua portuguesa, faz doutorado em educação na Universidade de São Paulo e é monitora do curso online do IPLA