Qual o sabor da bala? 15/05/2014

Por Maria da Glória Vianna

O sentido do dicionário, por ser igual para todos, tampona a singularidade

Luciana, 35 anos, médica bem-sucedida na carreira, foi procurar uma análise devido a um recente sofrimento amoroso. Alegou ter medo de entrar em depressão. Quando a analista lhe perguntou a respeito de como se relacionava com seus colegas de trabalho, pacientes, funcionários, disse, em tom apreensivo: “-Eu fico tão apavorada toda vez que alguém se aproxima de mim para falar alguma coisa, que, imediatamente, tenho que botar uma bala na boca”.

Naquele contexto, a analista poderia entender que a paciente se referia a um confeito, por exemplo, uma bala de hortelã. Mas, se ela ficasse presa apenas a esse sentido da palavra bala (o de confeito), não poderia tentar compreender a dimensão do sofrimento que o contato com outras pessoas representavam na vida da médica.

Já que, em língua portuguesa, a palavra bala é polissêmica, foi possível se aproveitar dessa característica para investigar se havia, na paciente, alguma intenção suicida. Talvez fosse o caso de que, para a paciente, aproximar-se de outra pessoa era tão apavorante que ela preferia se utilizar de uma bala de revólver para resolver sua angústia.

Então, aproveitando-se, em um só tempo, de dois bisturis da segunda clínica (a escansão e a equivocação), ao escutar a frase, a analista limitou-se a fazer um gesto de apontar um revolver para a própria boca. Era uma alusão à possibilidade de colocar outro tipo de bala no seu corpo. Por que o fez?

Quando um analista escuta uma palavra, ele não pauta sua ação no sentido do dicionário. O sentido do dicionário, por ser igual para todos, tampona a singularidade. Por esse motivo, ao ouvir uma palavra que pareça mais recheada de gozo, como no caso de “bala”, que parecia apontar para a posição subjetiva da paciente, ele a decalca do sentido mais comum na linguagem corrente. O analista, portanto, interessa-se por investigar o que cada uma das palavras pinçadas em uma sessão significa para aquele sujeito, singularmente.

No caso de Luciana, por meio do gesto que equivoca, a dimensão do significante foi aberta. Sem dizer nenhuma palavra, em absoluto silêncio, a analista não apontou outro sentido da palavra por apontar. O que ela fez foi fazer ressoar como o sujeito ignorava o laço mortífero que o prendia ao seu gozo.

Hoje, na clínica, não se trata de perguntar o sabor da bala, mas de suportar, com o ato calado, a dimensão do horror que o sujeito não pode nomear.

Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística e membro do Corpo de Formação do IPLA