Por Dorothee Rüdiger
Para a psicanálise, a responsabilização pelos próprios atos não é uma questão de culpa e pena, mas de atitude: não depende da idade
A satisfação imediata e sem atalhos é prometida às crianças e adolescentes, hoje, independentemente de sua classe social. Sem obedecer à lei penal, obedecem, sim, a um imperativo da sociedade contemporânea: consumir, ser feliz por toda lei. Fora da lei, essa satisfação pode ser representada por um celular furtado, roupa de grife comprada com cartão de crédito roubado ou uma aventura inusitada com um carro tomado “emprestado” do vizinho. Espanta o tédio. Quando seus pedidos não são atendidos por seus pais, parentes ou pela sociedade, alguns tomam, então, por vias tortas, seus direitos inscritos no rol dos direitos humanos que lhes prometem ” felicidade, amor e compreensão”, cometendo delitos.
No entanto, o ambiente feliz e harmonioso, no qual a criança deve crescer, está apenas no ideal da lei e no imaginário das publicidades televisivas. Felicidade, amor e compreensão, percebem os jovens, são restritos, já que dependem das condições da civilização. E esta exige o cumprimento da lei. Assim sendo, para a psicanálise, a lei diz respeito aos jovens num duplo sentido: jurídico e psíquico. Seres humanos nascem sujeitos à lei. A lei garante seus direitos, mas exige sua sujeição, torna-os sujeitos. Isso causa conflitos, rebeldia e até crimes – cometidos inclusive por crianças e adolescentes.
Sabe-se que respeitar as normas faz parte de um longo processo de formação na infância e na adolescência. Obedecer, como diz a lei, implica, por outro lado, o gozo do direito à proteção integral dispensada à criança e ao adolescente pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo Estado. O respeito ao processo de crescimento e ao direito dos jovens à proteção é hoje reconhecido pelo direito da infância e da juventude . Faz parte de sua cidadania.
No entanto, chama atenção que muitos jovens, de todas as classes sociais, cometem crimes violentos sem demonstrar remorso. Como sujeitá-los à lei? Enquanto os pais, juízes, advogados e profissionais responsáveis pelo tratamento dos jovens se batem com a questão como tratar e educar em vez de punir, eles, os jovens, expressam seu mal-estar nos delitos. Não falam, fazem “a passagem para o ato” .
As crianças e os adolescentes, hoje, são considerados cidadãos, não mais “menores”, como ainda eram considerados até no final do século 20. Passaram a gozar de direitos próprios à sua condição, além do rol dos direitos previstos para os adultos. Têm seus direitos fundamentais positivados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Dentre outros tantos direitos, o ECA prevê, para crianças e adolescentes em conflito com a lei, o tratamento médico e psicológico como medidas protetivas e sócioeducativas.
Não há medida mais justa, à primeira vista, do que prestar aos jovens a assistência necessária para tirá-los de situações de risco pelo tratamento, protegendo-os dos males da sociedade que os descaminhou e, assim, reparar os danos causados pela situação na qual se encontram. O tratamento psicanalítico dessas crianças e adolescentes já é praticado nesse contexto, como, por exemplo, em projetos do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), no Estado do Rio de Janeiro.
No entanto, há divergências entre o direito e a psicanálise sobre a possibilidade de fazer com que o jovem possa viver uma “relação harmoniosa” com a lei. Para a psicanálise não há uma cura definitiva do mal-estar na civilização. Além disso, a infância não é simplesmente um estágio de desenvolvimento que atinge seu fim com a idade adulta. Os conflitos da infância permanecem no adulto. Por outro lado, a criança não é um ser humano “inocente”. Sigmund Freud causou, no início do Século 20, um verdadeiro escândalo com suas descobertas sobre a sexualidade infantil. Jacques Lacan foi mais radical; para ele, não há distinção no tratamento entre o sujeito jovem e o adulto. Finalmente, enquanto o direito ainda se pauta pela moral e pelo dever, a psicanálise visa uma tomada de posição ética, uma atitude de qualquer sujeito, seja ele criança, adolescente ou adulto.
Direito e psicanálise podem ter um campo em comum no tratamento de jovens e de suas famílias como medida tomada pelo Conselho Tutelar ou pelo Juizado da Infância e da Juventude. No entanto, obedecem a lógicas diferentes. A lógica do direito pode correr o risco de desresponsabilizar os jovens, inocentando-os em decorrência das circunstâncias de seus atos.
A psicanálise pode chegar ao limite de responsabilizar os considerados inimputáveis pela lei. Pois, enquanto a lei ainda se baseia na ideia do livre arbítrio, a psicanálise discute a responsabilidade pelo inconsciente, como o faz Jorge Forbes em sua obra “Inconsciente e responsabilidade”. Mas não é a culpa no sentido da lei que está em questão. É a atitude que, independente da lei, se faz necessária para que cada um possa, no mundo globalizado, se ligar a uma cultura que está perdendo as referências autoritárias, sem passar por cima dos outros. E atitude, aposta a psicanálise, até criança pode tomar.
Dorothee Rüdiger é doutora em direito pela Universidade de São Paulo e psicanalista lacaniana