Por Liége Lise
É possível dar continuidade ao tratamento fora do dispositivo analítico do consultório? Haveria uma regularidade presencial a ser garantida? Uma reflexão sobre o atendimento psicanalítico a distância
A Internet revolucionou as relações interpessoais nos mais diversos campos, da esfera privada às relações sociais e de trabalho, e chegou também ao âmbito das práticas médicas. O uso da tecnologia móvel e do espaço virtual para atendimento clínico é uma tendência global.
Exemplo disso é a iniciativa do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo (IPq), que começa a realizar o tratamento de pacientes com diagnóstico de depressão por meio de consultas por videoconferência via Internet. Trata-se de uma pesquisa que objetiva verificar a eficácia do atendimento virtual em comparação ao presencial. Essa prática só é endossada pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) por se tratar de uma investigação; caso contrário, o Conselho não autoriza essa forma de atendimento.
O atendimento clínico à distância (por telefone ou Skype) é um recurso utilizado em alguns países, como o Reino Unido e a Argentina. Segundo o psicólogo Peter Jones, da Universidade de Cambridge, a modalidade de tratamento facilita o acesso a serviços de saúde mental de pessoas com limitações de tempo, transporte ou com deficiências físicas. Ele coordenou um estudo a respeito, publicado na revista “PLoS One”.
E nós, psicanalistas, como nos posicionamos frente essa nova prática? É possível dar continuidade ao tratamento fora do dispositivo analítico do consultório? Haveria uma regularidade presencial a ser garantida? A presença do analista é um dos aspectos fundamentais para o encontro psicanalítico. A transferência, condição para a consecução de um tratamento, passa pela sustentação na presença, no corpo do analista do que esse encontro provoca. Como ficaria essa dimensão nos tratamentos virtuais? Essa nova modalidade de atendimento levanta questões importantes.
A psicanálise não é um genérico. O tratamento psicanalítico é singular. Dá-se no caso a caso, no encontro único e surpresivo entre um analisando e um analista. O feliz acaso, ou feliz encontro, bom-heur, como nomeou Jacques Lacan. Não é uma prática que pode ser universalizada e reproduzida em série. Sigmund Freud relata que atendeu Katharina nas montanhas e Mahler num passeio em Leyden. Esses casos mostram que é possível haver tratamento fora do consultório, mas não se apresentam como regra.
A responsabilidade por sustentar a prática analítica é do analista que, emprestando consequência ao seu desejo, empenha sua escuta, sua voz, seu corpo e sua presença e convoca o analisando a não recuar frente ao seu desejo. Nesse encontro se atualiza o inconsciente, o estranho e o enigmático, que remete ao Real, dimensão que escapa ao sentido e a nomeação.
A prática lacaniana é sem standarts, mas não sem princípios. O virtual se confirma como um espaço de interelações e o atendimento clínico online é uma nova realidade. Caberá a cada psicanalista, no caso a caso, na singularidade de cada atendimento, decidir em que condições pode se dar o tratamento, se guiando pela ética da psicanálise.