Gisele Vitória entrevista Paulo Mendes da Rocha
Paulo Mendes da Rocha, lenda da arquitetura brasileira e único brasileiro vivo vencedor do Prêmio Pritzker, conta com exclusividade qual seria o seu projeto de reconstrução da Notre-Dame e, aos 90 anos, diz que não se deve esconder as marcas da história.
Paulo Mendes da Rocha me pergunta: “Você fuma?” Respondo risonha que não. Explico que tenho asma e brinco: “Você já queria me pedir um cigarrinho? Fique à vontade para fumar”. Ele emenda, sentado à mesa em seu escritório iluminado onde trabalha há 25 anos, com vidraças amplas e cheio de maquetes, em pleno centro de São Paulo: “Não vou fumar. Assim vou matar você. Mas uma conversa boa tem que ter um cigarro”. Ele diz, aos 90 anos, caminhando para 91 em outubro, regido pelo signo de escorpião, que já não fuma mais. Só em ocasiões especiais, como um papo com amigos. Diz que o médico lhe informou que um cigarro por semana é a mesma coisa que nada. “Fumei dos 14 aos 80. Nasci em 1928. Uma das receitas é esse cigarro aí. Tudo o que dá prazer faz bem”, diz, com a ressalva que parou porque o médico disse que daqui para frente o pulmão não aguenta. Pelo visto a conversa estava boa. A lenda da arquitetura brasileira, único brasileiro vivo vencedor do Pritzker, prêmio máximo da arquitetura mundial, pronunciou uma certa senha a Eliane Duarte, a fiel escudeira em seu escritório. Mais um pouco, ao final da entrevista, ele acendia o desejado cigarro enquanto passeávamos pelo espaço e olhávamos seus projetos e gavetas de mil utilidades. Ao lado da psicanalista Teresa Genesini, amiga do arquiteto, introduzi o assunto da entrevista. O tema da preservação, o incêndio da Notre-Dame, a discussão em torno de sua reconstrução, e tudo o que tem sido tratado também por aqui, desde o trágico incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Peço permissão para abrir uma papelada. Eram prints de imagens da Notre-Dame destruída pelo fogo e outros desenhos da catedral intacta. Eu estava com más intenções. Na véspera, tive a ideia de levar imagens ampliadas da Notre-Dame na esperança de que Paulo Mendes da Rocha rabiscasse sobre elas alguns de seus traços preciosos em uma possível sugestão de projeto.
O arquiteto já atuou em intervenções importantes, como a do prédio da Pinacoteca do Estado de de São Paulo. Desenrolei o rolo de papéis, espalhei imagens sobre a Notre-Dame sobre a mesa do arquiteto, mas tive uma surpresa. Ele disse que me entregaria um desenho, sim, mas sem traços. É o que conta a seguir nesta entrevista exclusiva a Robb Report Brasil:
Qual seria o seu projeto para reconstruir a Notre-Dame?
Tenho uma opinião nítida sobre essa questão. Como eu faria enquanto arquiteto? Andei pensando. Você mandou um bilhete falando da Notre-Dame, lembra? Me ocorreu essa ideia: do ponto de vista da cultura, a ideia de preservação contém um significado político grande.
Preservar é como uma determinada política. Preserva-se ou não. Significa dizer que memória é a memória do que você quiser ter da coisa. Não é o que ela é, necessariamente. Não precisa ser uma arbitrariedade, pode ser baseada na ciência, pode ser especulativa. Tanto quanto é a cogitação das nossas origens. Nascemos há quatro milhões de anos. Viemos do homo sapiens. É uma história construída de modo político e com intervenção naturalmente, com apoio de ciência e da técnica, de escavações. É uma política a decisão de se iluminar a Torre Eiffel, com brilhos, cores e pisca-piscas. Originalmente ela não era assim. Portanto, se é político, eu tenho a impressão de que o melhor modo de preservar a ideia de um futuro, e a memória disso, é deixar a Notre-Dame exatamente como ela está hoje. Considero que o incêndio em um monumento desse tipo foi uma notícia muito interessante. Foi uma surpresa. A impressão que se deve ter é que uma catedral, feita à mão com pedra, não teria como pegar fogo. Mas a cobertura era toda feita de estrutura de madeira. O fato deve ficar registrado.
O sr. então não mexeria em nada?
Sim. O fato que houve deve ficar registrado. Para revelar inclusive um aspecto que já existia. Fica mais exuberantemente exposto por dentro ou por fora, sujeito a intempéries. Não ofende o granito. Ele fica ali. Empilhado pelo resto da vida. Ou vai caindo aos poucos também. Juntar, varrer, usar técnicas das mais sofisticadas para impedir que continue caindo, eu faria alguma coisa assim. Essa construção que deve ter 1000 anos. A construção começou em 1100 e poucos, imagine você. As torres tem altura de um prédio de 30 andares em um lugar em que a construção mais alta tem o equivalente a cinco, seis andares, como o Louvre, digamos. Portanto, seria uma visão museológica da própria catedral, no sentido do que ela se tornou como construção pouco a pouco. Acho muito interessante considerar isso.
E a chuva? Choveria dentro da catedral…
É lindo se entrar chuva. Só não serviria para rezar uma missa, o que seria uma virtude. Mas as capelas laterais poderiam cumprir essa função do uso. Naturalmente que se limparia o recinto, tiraria os escombros para a visitação depois do desastre. Não poderia ficar nenhuma viga pendurada. Poderiam retirar todos os bancos e ficar uma praça a céu aberto. Há um raciocínio análogo e um episódio contemporâneo à nossa conversa. Uma igreja foi bombardeada na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1960, o governo local abriu um concurso de arquitetura para a reconstituição. Um arquiteto se inscreveu no concurso e sugeriu apenas limpar caminhos e deixar como estava, bombardeada, deixando o local como uma memória. É preciso ver que a Acrópolis de Atenas e o Coliseu também não foram reconstruídos. Essa política nem é nova. Para reproduzir o Coliseu seria preciso também reproduzir os tigres devoradores. No fundo, a nossa grande descoberta é que a natureza absolutamente não nos ampara.
Por quê?
A Natureza é um inferno. Terremotos, vulcões, inundações, incêndios. Para viver, temos que transformar a natureza. Tanto assim que as cavernas que foram habitadas são os museus mais importantes do mundo, como Altamira com suas pinturas (na Espanha). A nossa existência é feita de transformar a natureza de algo habitável. Naturalmente cometemos erros. Destruímos a natureza. Portanto, estamos aqui para construir a memória que queremos ter da nossa existência, enquanto política. E essa transformação é uma maravilha. O monumento agora é mais valioso para se preservar, enquanto memória, do que simplesmente como estava. A Notre-Dame é o que é agora.
E a ideia de reconstituir a agulha ou fazer uma intervenção moderna?
Pelo modo como foram feitas na época, essas construções são impossíveis de serem reconstituídas. Você não tem mais esse tipo de mão de obra. Basta ver a questão das famosas gárgulas, que é um aspecto da catedral muito comentado sempre. Aquelas carrancas, assim como toda a catedral, eram os operários que faziam. E ninguém ia fiscalizar lá em cima. Tinha que instalar lá. Eles se davam o direito de se divertir e fazer coisas escatológicas até. Comiam lá em cima e faziam fogueiras para esquentar as marmitas. Como pegou fogo agora?
Não faria sentido reconstruir a agulha?
Não é que não faria sentido. Eu disse que o meu projeto, do pondo de vista político e cultural, quanto à questão de preservar à memória e quanto à questão de ter a memória como conceito, é deixar a Notre Dame como está. A memória é construída. Ela não existe por si. Você precisa criá-la. Então, faz parte da memória o incêndio que houve agora. No século 21, em 2019, com operários trabalhando na restauração, o fogo queimou uma coisa construída há quase mil anos. Como uma faísca vira aquele fogo na estrutura inteira? É o caso de descobrir como foi. Devem ter demorado para perceber. É a nossa história. Não podemos esconder a história e fazer de conta que não houve nada. O Vaticano gasta fortunas para esconder coisas. Vão então gastar uma fortuna para mostrar mais uma vez que não houve nada? Quem sabe até a oportunidade para melhorar? Então vai todo mundo tocar fogo na sua catedral, se ficar melhor? Compreende o que quero dizer? É como o herói de guerra que se orgulha da perna de pau. E da perna que perdeu. Claro que no caso da Notre-Dame, o que aconteceu não é motivo de orgulho. Mas, depois do incêndio, a Catedral se iluminou definitivamente.
Por causa do sol que entra pelo teto aberto?
Sim. Imagine o sol da tarde refletido lá dentro. O fogo pôs a luz para dentro da catedral definitivamente. O fogo é origem de nossa formação de consciência e linguagem. Deve estar lindo lá dentro. Os vitrais devem estar coloridos como nunca estiveram. Agora o sol reflete no altar. É uma revelação. É a memória nova que queremos ter agora. É uma deliciosa fantasia da construção como espetáculo permanente. Eis a memória. Eu fiz um desenho, como você queria. É o que a arquitetura chama de desenho. Desenhar é uma ideia. Vem de desígnio. O que se faz depois são instrumentos de comunicação para construir. O desenho não é o que está no papel. O desenho está na sua mente. Você não desenha para ver como é, mas para o outro ver aquilo que você desenhou na mente.
Como você se sente como o último dos modernistas?
Quem te falou que eu sou o último? Agora você vai ter que explicar (risos). Você tem que ser sempre moderno. Não existe a ideia de moderno como um momento, um estilo. O homem sempre foi moderno, na frente de um outro. Estamos condenados a ser modernos.
E sobre a vida? E o seu legado?
Eu nunca esperei nascer, não estava programado. Nem você. Todos nós somos acidentes da natureza humana. Não posso avaliar o meu legado. São os outros que avaliam. Ninguém faz nada para si. Sempre é para o outro. O que você está fazendo aqui? Por que não ficou em casa? Somos uma conversa permanente.
Como é ter 90 anos?
Eu não sei. porque eu nunca tinha tido antes. Você nunca tem nada. Você é.
Na perspectiva dos 90 anos, como vê vida e morte?
Vida e morte é uma coisa só. Se não existisse a morte não poderia existir a vida. A vida é o que há, antes que você morra. Se você morrer, não há mais nada. Nenhum de nós pode saber o que é a morte. Pode sentir a falta do outro. Pode provocar a morte do outro. Inclusive a sua morte, você pode provocar. Até diante da morte temos uma grande liberdade. Só vivemos enquanto queremos viver. Podemos nos matar a qualquer momento. Mas não se pode saber o que é a morte. A morte simplesmente não é. Ou seja, não existe a morte. Só existe a vida.
Gisele Vitória é jornalista, editora-chefe da revista Robb Report Brasil e diretora da GBR Comunicação.
Publicado originalmente na edição 6/2019 da revista Robb Report Brasil