Pra que serve isso? | Provocações 21/10/2023

Ata do Curso da TerraDois, conduzido por Jorge Forbes, no IPLA em 10 de outubro de 2023. Estabelecida por Vania Viana de Oliveira.

“Todas as belezas contêm algo de eterno e algo de transitório,
de absoluto e de particular.
A beleza absoluta e eterna inexiste.
O elemento particular de cada beleza vem das paixões,
e como temos paixões particulares, temos nossa beleza particular”
 Baudelaire

A nossa reunião se inicia com a leitura, por Teresa Genesini, a pedido de Jorge Forbes, da última ata estabelecida por Daniela Gatto. Ato contínuo, Forbes faz a leitura do mesmo texto, reescrito pelo chatGPT como Fernando Pessoa. A título de inquietação e como epígrafe do trabalho do dia, fica a pergunta de Forbes: O que quer dizer Fernando Pessoa fazendo um texto a partir de Daniela Gatto?

Assim como o poema de Alberto Caieiro[i] e a questão da felicidade que trouxe na última semana, Jorge Forbes nos provoca:

– Para que serve usar um texto estabelecido por Daniela Gatto modificado pelo robô que, mesmo nos apresentando um trabalho primário, bem longe da poesia de Fernando Pessoa, acrescenta rimas, palavras e conhecimentos que não estavam no texto original?

– O que temos a dizer diante da afirmação do, talvez, intelectual mais influente dos dias de hoje, Yuval Noah Harari que termina seu trabalho Homo Deus[ii] dizendo que virá o dia em que nossas questões serão resolvidas por fórmulas químicas? O remédio virá nos curar do real? O real é controlável?

– Como nos posicionamos quando Francis Fukuyama, em O Fim da História e o Último Homem, defendeu que a história havia acabado porque se havia finalmente encontrado a forma correta de ser? Se a história acabou, teríamos então uma determinação? Não somos animais históricos?

Depois da previsão do fim da história, com a guerra do Iraque e outras, Fukuyama escreve A Grande Ruptura[iii]. Neste trabalho ele reconhece que foi otimista ao afirmar o fim da história, e que houve uma grande ruptura, mas que isso seria consertado pela moral inerente ao homem. Fukuyama, assim como Harari e outros, não se rendem à evidência, funcionam no eixo da impotência para a potência – aquilo que eu não sei hoje, amanhã saberei. A questão para o psicanalista é ir da impotência para o impossível.

É fundamental em uma análise saber o momento de manter a expectativa da potência, que se traduz em um saber mais de si. Uma análise se conduz da impotência para a potência e da impotência para o impossível. Da impotência para a potência é o registro simbólico de uma análise e da impotência para o impossível, o registro real.

Por que o tirano é burro?
Greimas e o discurso do mestre

Em ‘Carta ao Lula’, texto publicado em ‘Você quer o que Deseja?’, ao escrever ao presidente: “Não se explique, não se justifique”, Forbes está dizendo da arbitrariedade das escolhas dele. Ao que o presidente responde: “Eu não posso fazer isso, eu jamais fui autoritário”. A palavra autoritário só tem sentido se tudo que eu falo puder ser explicado.

A. J. Greimas (1917-1992)[iv], um dos mais importantes semióticos do mundo, teorizou o poder dos discursos mostrando como eles combinam entre si:

O discurso da publicidade tem o poder de fazer querer;

O discurso do direito tem o poder de fazer dever;

O discurso da ciência tem o poder de fazer saber;

O discurso da tecnologia tem o poder de saber fazer.

Todos esses discursos podem ser questionados, são “conversáveis”, podem ser discutidos. O único discurso que não pode ser questionado é aquele que tem o poder de fazer fazer, o discurso tirânico. A tirania que se exerce pelo autoritarismo tem o poder de fazer fazer. A arbitrariedade costuma ser tomada por tirania e dela nos queixamos imaginariamente, reação comum a um discurso que aparentemente é tirânico e como tal representa o máximo do poder. O discurso arbitrário, porém, representa o máximo da impotência. A impotência se antepõe à tirania.

A impotência é entendida como um déficit e não como razão de estrutura. Harari e Fukuyama não funcionam com a impotência. Jaques Lacan funciona com a impotência e a impotência inclui o impossível a se explicar.

O analista funciona na esperança do simbólico e na impossibilidade do real. Quando diz “Fale tudo que vier a sua cabeça, sem crítica” há uma esperança no simbólico. Quando faz o corte da sessão, o corte do discurso, comparece a dureza do real. Se o real na clínica for visto excessivamente como dureza, o paciente pode ir embora considerando que o analista é um tirano, mal-educado, etc. Se o analista faz o contrário, o paciente pode ficar dormindo em berço esplêndido, no conforto do simbólico. Como, na clínica, saber quando usar o registro do simbólico ou do real? Não há, até o momento, uma cartilha do ‘É assim que se faz’. Como não se explica a um piloto de Fórmula 1: “Se faz assim naquela curva”. Como ficar na interlocução com esse real? Há muitos anos a medicina chama a isso de olhar clínico. Olhar clínico é alguma coisa que se sabe sem saber por que sabe.

Jorge Forbes destaca que o mais importante deste comentário é realçar que o discurso da tirania, guardadas as proporções, entre os quatro discursos de Lacan, se assimilaria ao discurso do mestre. Fato que leva Jacques Lacan a escrever o seminário, “O Avesso da Psicanálise”. O avesso da psicanálise é o discurso do mestre. O analista fica na contraparte do mestre. Ele não tem esperança de tudo saber e tem que transmitir ao analisando um impossível. Transmitindo ao analisando um impossível, a psicanálise vira uma ética e não uma terapia. Lacan deixa isso bem compreendido desde o início, no Seminário da Ética[v] e o esclarece ainda mais no Seminário 11, ao dizer que a psicanálise é uma ética. Ética é incluir alguma coisa na vida, e o que se inclui é o impossível. Forma mais inteligente de dizer que uma análise continua pra todo e sempre porque do real ninguém se safa.

Pergunta de Liége Lise: Se o discurso tirânico, o poder de fazer fazer, se aproxima do arbitrário, se ele é arbitrário, em que isso se diferencia do arbitrário presente na psicanálise, uma vez que ela não é democrática?

Resposta: Um é a arbitrariedade do signo linguístico, o outro é a arbitrariedade da pessoa. O termo arbitrário surge em Saussure[vi], para dizer que por mais que a palavra signifique a coisa, há sempre um arbitrário, ou seja, ela nunca significará totalmente. Isso é uma arbitrariedade. A mesma palavra é utilizada para momentos que não tem discussão, por exemplo: Não tem discussão, eu quero você fazendo isso até as 4 horas da tarde.  Isso é um discurso tirânico, é uma arbitrariedade da vontade de uma pessoa e não do sistema linguístico. O discurso tirânico, para dar um exemplo, é o discurso da repartição pública.

“Não entre aqui sem desejo”
Uma leitura desejante de Jacques Lacan

Forbes nos convida a uma leitura desejante de Lacan. O exercício é, frente a qualquer texto, provocar, fazer falar. Uma leitura desejante se contrapõe a uma leitura necessária. Não há leitura desejante sem implicação da libido. Sem paixão. Paul Valéry, no frontispício do Museu do Homem, em Paris, já avisa ao transeunte: “Não entre aqui sem desejo”. Que ninguém esteja desavisado. Há que se entrar num texto de Lacan com desejo. Ele próprio, Lacan, já avisa em seus Escritos, há que se “colocar algo de si”[vii].  Colocar de si não é fazer o lacanês. Lacanês é usar o discurso necessário, não desejante.

Iniciamos a leitura do Capítulo XXIII, do Seminário 2, de Jacques Lacan: Psicanálise e Cibernética, ou da Natureza da Linguagem, de 1955.

Esse é um título mais que esquisito. Psicanálise e cibernética é surrealista. Lembra Salvador Dali que junta uma máquina de costura com um guarda-chuva, uma junção apenas pensável no surreal. Lacan acrescenta: Ou da natureza da linguagem. Quando se diz “da natureza da linguagem” pensa-se em natureza biológica ou essência da linguagem.

Lacan agradece especialmente ao professor Jean Delay, que inaugurou a série de conferências e que estava presente à sessão, por ter dado ao seu seminário “um teto que ilustra este ensino por todas as recordações que nele se acham acumuladas”. Ça se dit Lacan. O teto a que Lacan se refere é o do Hospital Sainte-Anne, local onde fez sua residência em psiquiatria e onde havia começado seus seminários há dois anos.  

Em 1964, nove anos depois, Lacan abrirá o seminário 11 também com agradecimentos, inicialmente a Fernand Braudel que, incitado por Claude Lévi-Strauss, o ajudou a se mudar de Sainte-Anne para a Escola Normal Superior onde, acolhido como refugiado, poderia dar continuação ao seu ensino. A Lévi-Strauss, Lacan agradece ao que elaborou em correspondência ao seu próprio trabalho. Sua obra, Antropologia Estrutural, permitiu a Lacan extrair o que havia de estrutura no mito do Édipo e abriu caminho para a criação de conceitos como função paterna, função materna e função desejante. 

Em sua proposta de leitura crítica dos textos, Forbes compara o agradecimento que Lacan fez em 1955, em Sainte-Anne, àquele feito nove anos depois, na Escola Normal Superior, na abertura do Seminário 11, em 1964. Lacan mudou o tema de seu seminário ao sair de Sainte-Anne, onde iria falar sobre o pai. Agora, em nova casa, Lacan vai falar dos conceitos fundamentais. Ele sai da medicina e vai para filosofia. Tendo um público marcadamente de estudantes de filosofia, Lacan muda o tema e vai buscar os referenciais conceituais para voltar à clínica. O título do Seminário 11, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, mostra que ele sabe que está se dirigindo a um novo público, do qual faziam parte os “meninos” do Centro de Epistemologia e Lógica da Escola Normal Superior: Jacques-Alain Miller, Alain Grosrichard, François Regnaut, Jean-Claude Milner.

Voltemos a 1955. Segue a leitura: “quero falar-lhes hoje da psicanálise e da cibernética”, Lacan poderia hoje dizer, quero falar-lhes da psicanálise e da inteligência artificial. O assunto psicanálise e cibernética pareceu a Lacan digno de atenção, uma vez que se tratava de aproximar, ou não, a psicanálise das ciências humanas. Nesta conferência, não exclusivamente nessa, Lacan classifica a psicanálise não como ciência humana, mas como ciência conjectural. Elemento a se ter em importância aqui: ciência conjectural é diferente de ciência humana. E Forbes antecipa que a matemática está mais próxima da ciência conjectural.

Lacan continua sua fala pelo “não”, pelo que ele não vai falar. Não vai falar das formas sensacionais da cibernética, nem das maquininhas e maquinonas, nem seus nomes ou maravilhas. Mas vai, sim, nos perguntar, em que tudo isso pode interessar à psicanálise. A partir da pergunta de Lacan, Forbes avisa: “É necessário dar atenção à interrogação que o avanço da ciência nos convoca. Se o texto de Daniela Gatto fosse refeito por um computador, em nome do maior poeta da língua portuguesa, quem fez o texto? O computador é igual ao humano ou o humano é igual ao computador? Qual é a distância e semelhança entre esses fatores?”

Para Lacan, algo pode ser depreendido da relativa contemporaneidade da psicanálise e da cibernética. A este respeito, não pretende ser exaustivo ou conclusivo, seu eixo não é o fascínio, mas a forma de pensar e fazer ciência em um e outro campo. Este eixo não é outro senão o da linguagem. Lacan vai trabalhar a relação entre psicanálise e cibernética, entre pensamento e ciência na psicanálise e pensamento e ciência na cibernética, através da natureza da linguagem. São os aspectos da natureza da linguagem que ele vai nos fazer entrever nessa conferência que passa pela filosofia, ciência, psicanálise, etc.

A pele se repete,

só sabe pelear

Jorge Forbes, em 2016, escreveu o texto Nano-Psicanálise[viii], e o apresentou ao X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise. Não foi entendido pela diretora da mesa, médica psiquiatra e psicanalista, que pensou se tratar de um gadget ou uma brincadeira. Ao se valer da nanotecnologia em sua capacidade de chegar a uma célula pluripotente[ix], Forbes valida o conceito de nano-psicanálise em sua capacidade de alcançar o nano-sintoma. A nano-psicanálise retira o sintoma de suas amarras habituais mostrando que um sintoma é o congelamento de um contexto: “Se eu retiro esse congelamento do sintoma, eu extraio a célula pluripotente que devolve a criatividade à pessoa. Não vai nisso brincadeira alguma, vai uma forma mais atual de explicitar a clínica psicanalítica.”

A definição de sintoma como congelamento de um contexto, não é habitual, acabou de ser inventada, aqui, hoje. Uma célula de pele, por exemplo, está congelada no sentido da repetição de sua função. Célula de pele só sabe pelear. Assim como a resistência própria ao sintoma, que é repetir, a resistência própria à pele é de apenas fazer, repetidamente, pele. Como fazer pele virar pulmão?

Onde o desejo persiste

O amor fati

Forbes acrescenta à sua introdução o conceito nietzschiano de amor fati. Nesta elaboração, o amor fati é, para o analista, uma ferramenta de quebra de contexto. Sobre o sintoma como o congelamento de um contexto, Lacan e Freud, de outras maneiras já o haviam dito. Se o sintoma é uma resposta ao outro, ele é, portanto, contextual.

O amor fati é entendido por Luc Ferry como um erro de Nietzsche. Por este viés, ao retirar o passado, por ser triste e nostálgico e o futuro por também ser triste, visto que não existe ainda, o amor fati nos levaria a amar as atrocidades que, por exemplo, neste momento estão acontecendo tanto na guerra da Rússia, quanto no Oriente Médio. Mas, ao entendê-lo como o amor do fato, da irrealidade do fato, o amor fati passa a ser ‘o amor apesar de’ e não ‘por causa de’. O amor fati é a persistência do desejo onde tudo virou necessidade.

Forbes retoma sua formulação sobre os discursos e acrescenta que, quando a necessidade é obscena, o desejo sai da cena. O obsceno é o que está além da cena. É aquilo que não suporta o vazio, o impossível além da cena e tenta nomear este impossível. Numa guerra como a que está acontecendo no Oriente Médio e na Rússia, vemos a obscenidade humana que proíbe o desejo.

Freud já disse isso de certa maneira, mas de uma forma negativa, quando escreveu que não se faz análise em períodos de crise[x]. Até hoje isso é repetido como ordem de Freud. Mas a psicanálise deu um passinho à frente, e com ajuda de Jacques-Marie Émile Lacan, Forbes avança mais um passo ao poder dizer que mesmo diante da obscenidade de uma guerra, por exemplo, uma pessoa pode continuar na insistência, na criatividade e no entusiasmo do amor fati.

Para concluir, Forbes faz uma aproximação bastante operativa na psicanálise: o amor fati de Friedrich Nietzsche parece ser a base da definição ética de Jacques Lacan. E Lacan define a ética como: não ceda em seu desejo.

Não ceda em seu desejo.


[i] O poema “Quando Vier a Primavera” de Fernando Pessoa.

[ii] Yuval Noah Harari. Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã. 2016.

[iii] Francis Fukuyama. A Grande Ruptura – A Natureza Humana e a Reconstituição da Ordem Social.

[iv] Algirdas Julien Greimas. Considerado o fundador da semiótica dita discursiva igualmente nomeada de semiótica francesa, semiótica estrutural ou semiótica greimasiana.

[v] Jacques Lacan. Seminário 7 – A Ética da Psicanálise

[vi] Ferdinand de Saussure. Natureza do Signo Linguístico. Curso de Linguística Geral

[vii] Jacques Lacan. Escritos. Abertura da coletânea: “Queremos (…) levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si”.

[viii] Jorge Forbes. Fazer-se tolo de um real: o que é crer no sinthoma. 2016

[ix] As células pluripotentes são capazes de originar qualquer tipo de tecido sem, no entanto, originar um organismo completo, visto que não podem gerar a placenta e outros tecidos de apoio ao feto.

[x] Sigmund Freud. Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise, 1912, Vol XII, Imago.