Por que sou uma mulher? 15/11/2012

Por Dorothee Rüdiger

Uma conversa com (o seminário XIX de) Jacques Lacan

Sempre quis saber: por que sou uma mulher? Um belo dia, tive a oportunidade de  conversar com Jacques Lacan a esse respeito. Como assim?  Infelizmente, não tive a oportunidade de conversar pessoalmente com Lacan, mas pude conversar com seu seminário impresso muitos anos após sua morte. Criei um cenário fictício para, no imaginário, encontrar Dr. Lacan no início de sua conferência de 8 de dezembro de 1971.  Nesse cenário, o grande Freudiano, como é chamado, me cedeu uma entrevista e me convidou a refletir sobre minha vida de mulher.  Peço licença ao leitor para reproduzir essa conversa.
“Quando nasci,” contei ao Dr. Lacan, “pouco me importava a diferença dos sexos. Para quê? Queria mamar e só.  Para meus pais, a história de meu sexo era outra. Para eles e o resto do mundo, eu era dotada de órgãos sexuais femininos e, portanto, uma menina.  Mamei muito, cresci e aprendi a balbuciar minhas primeiras palavras. Assim, quando nasceu meu irmão, me dei conta que havia uma pequena diferença entre nós dois. Ele tinha um pedacinho de carne sobrando que fez dele um menino, tal como me explicaram.”
Depois de me escutar atentamente, Dr. Jacques Lacan comentou: “Eu não neguei, de início, que desde a mais tenra idade há uma diferença perfeitamente notável entre uma menina e um menino. Essa diferença, que se impõe como de nascença, é de fato bem natural. Certamente, muito cedo, mais cedo que podemos compreender, os indivíduos se distinguem.” Após esta afirmação, o psicanalista me pediu para continuar.
“Conforme fui crescendo, percebia que usava roupa de mulher: vestido, fita no cabelo, sapatinho de verniz”, contei. “Ganhei uma boneca no Natal. Fazia comidinha para a boneca, igualzinha à comida que Mamãe fazia para a família. Nos anos 1950 era assim: menina ganhava boneca. Meu irmão ganhava carrinhos e uma caixa de bloquinhos para construir prédios, cidades e torres, tal como os engenheiros adultos que construíam os prédios de verdade. Por que eu não podia construir prédios e torres, e por que ele não podia brincar com as minhas bonecas?” prossegui, retomando minha velha revolta infantil.
Pacientemente, Jacques Lacan continuou sua explicação. “(Os seres humanos) só se reconhecem como seres falantes rejeitando essa distinção por toda sorte de identificação. Daí a moeda corrente da Psicanálise ser o fato de perceber que está aí o maior impulso das fases de cada infância. As pessoas os distinguem, não são eles que se distinguem .”
“Por que essas diferenças?”, retomei.   “Entendia que eu tinha que aceitar a história dos bloquinhos e das bonecas, assim como o fato de que ele tinha um ´órgão´, um ´fazedor de xixí´ que permitia a ele, meu irmão, de fazer xixi em pé, enquanto eu não podia.   Era menina.  Era um menino ao qual faltava algo, um fazedor de xixí.”
Dr. Jacques Lacan riu e explicou que os adultos incorrem num erro. “Esse erro consiste em reconhecer, claro, que eles se distinguem, mas não em função dos critérios que dependem da linguagem, apesar de que, como eu digo, é pelo fato de que o ser é falante que há o complexo de castração.”   
 “Então, Dr. Lacan, “eu afirmei, intrigada, “essa pequena diferença me faria mulher, por que dizem que faz? Sou castrada por que dizem que sou ou porque não consigo dizer tudo que quero?” E prossegui: “Descobri mais tarde que, mesmo sendo menina, eu podia fazer muito daquilo que ´menina não faz´: praticar esporte em plena menstruação, por exemplo. Não deixei Mamãe saber e fiz. E o sangue não me subiu à cabeça!  Não esperei um homem a me tirar da casa dos pais para morar na casa dele. Minhas primas fizeram isso. Eu  fui  morar longe dos pais e numa república mista.  Era militante de grupos políticos e podia tomar a palavra nas assembleias estudantis, ‘que nem homem’.  Esses homens eram bons companheiros e maus amantes. Por quê?”
 Para o Dr. Lacan, eu tinha em minha luta pela emancipação, confundido alguma coisa. Tinha esquecido, na hora do namoro, que aquela pequena diferença pode fazer toda a diferença. “Nessas condições, para ter acesso ao outro sexo, deve-se realmente pagar o preço dessa pequena diferença, que passa de maneira errônea ao real, por intermédio do órgão, justamente quando deixa de ser tomado como tal e, ao mesmo tempo, revela o que quer dizer ser órgão. Um órgão é instrumento somente pela interpretação com a qual o instrumento se funde, isto é, um significante.”, disse o psicanalista.
Continuei com meu relato sobre o que era ser uma mulher. “Era a época que minhas colegas feministas ensinavam que a nós, mulheres, faltava era nada! Tínhamos também um órgão sexual correspondente ao pênis dos homens, agora dispensáveis na busca do prazer.  Tendo um  clitóris, diziam elas, nós  tínhamos quase que a obrigação de sermos lésbicas. Elas  não estavam nem aí com  esse negócio de se sentirem inferiores, castradas, não estavam nem aí com os homens. Afinal, não precisavam deles, dos ´paus´.”
Dr. Lacan ri. “Porque elas não se arriscam em tomar o falo por um significante. Fi-então! Phi-então! Signi-phi então!“
“Mas, eu gosto, é de homem” , confessei ao psicanalista. “Convivi bem ou mal com meus homens. Não queria entender por que não éramos iguais. E forcei muitas vezes a barra para provar que eu era igual. Até que um dia encontrei um homem com quem vi que a diferença é tudo de bom. Por quê? Não sabia dizer, não havia razão de ser, não havia entendimento e puro prazer. E continuamos não sabendo os porquês de nossos encontros. Somos diferentes como o Sol e a Lua. Se eu não fosse uma mulher, se eu não tivesse lá meus mistérios,  como  deixaria o desejo desse homem aceso?”   
 Nisso, o Dr. Lacan levantou-se e me deixou uma última palavra. Eu entendi que ele me disse para “desencanar” das diferenças entre homem e mulher.  “A ausência da relação sexual manifestamente não impede o laço, mas lhe dá suas condições”, finalizou o mestre. 
Desencanei.  Por que então sou uma mulher?  Não sei.  Só sei que, nos braços de um homem igualmente desencanado, ser uma mulher é tudo de bom.