Por que guerra? 07/08/2014

Por Sigmund Freud

Diante das guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, vale traduzir e transcrever trechos da carta pacifista que Sigmund Freud escreveu a Albert Einstein (*) 

Viena, setembro 1932

Caro Senhor Einstein!

Quando soube que o Sr. teria a intenção de me convidar para uma troca de ideias a respeito de um tema que mereceria sua atenção, e que lhe pareceria ser digno de despertar também o interesse de outras pessoas, aceitei de bom grado. Esperava que o Senhor escolhesse um problema que se coloca na fronteira daquilo que somos capazes de saber. Mas, o Sr. me surpreendeu com a questão acerca do que nós poderíamos fazer para nos defender contra essa verdadeira sina da humanidade, a guerra.

Só será possível evitar a guerra de uma maneira segura se os seres humanos puderem entrar em acordo a respeito de um poder supranacional, para o qual se transferisse a jurisdição sobre todos os conflitos de interesses. Assim, poderiam unir duas condições necessárias: a criação de uma instância acima dos interesses com a atribuição de poder necessário para seu funcionamento, já que só a criação de uma instância supranacional sem poder não seria útil. A liga das nações é idealizada para ser uma instância como essa. Só que não preenche a segunda condição. Não tem poder próprio e só poderia adquiri-lo se seus membros, os Estados, o cedessem. Mas, para que isso aconteça, parece haver pouca esperança.

O Sr. está espantado com a facilidade com que as pessoas se deixam entusiasmar pela guerra e desconfia que nelas atue uma pulsão que leve ao ódio e à destruição capazes de irem ao encontro com a demagogia bélica. Mais uma vez, só posso concordar plenamente com o Sr. Acreditamos na existência dessa pulsão e nos esforçamos durante os últimos anos em estudar suas manifestações. Quando os seres humanos são chamados à guerra, possivelmente, toda uma gama de motivos podem fazer com que digam “sim” . Podem ser motivos nobres ou baixos, motivos a respeito dos quais se fala abertamente e outros sobre os quais se cala. Não temos aqui a necessidade de expor todos. A satisfação provocada pela agressão e destruição estão dentre eles com toda certeza. Inúmeras atrocidades históricas e cotidianas reforçam sua existência e seu vigor. A mistura desses anseios destrutivos com os outros, eróticos e ideais, facilitam claramente sua satisfação.

Se a disposição para realizar a guerra é uma consequência da pulsão de destruição, o que se oferece [para impedi-la] é, em primeiro lugar, apelar ao oponente dessa pulsão, a Eros. Tudo que provoca laços sentimentais entre os seres humanos é capaz de provocar efeitos contra a guerra. Esses laços podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar cito os laços amorosos, laços parecidos com os que criamos com um ser amado, embora sem objetivos sexuais. A psicanálise não precisa ter vergonha, quando ela fala, nesse contexto, de amor. A religião também o faz: ame seu próximo como você mesmo. Exigir isso é fácil, difícil é realizá-lo. O outro tipo de laço sentimental cria-se através da identificação. Tudo que é capaz de produzir importantes interesses comuns entre os seres humanos provoca tais laços sentimentais e identificações. Neles se baseia em grande parte a construção de uma sociedade humana. A situação ideal seria naturalmente uma comunidade de seres humanos, que tenha sujeitado suas pulsões à ditadura da razão. Nada seria mais capaz de provocar uma união perfeita e resistente entre os humanos, mesmo se estes resolvessem abrir mão dos laços sentimentais. Mas isso, provavelmente, é uma esperança utópica.

Por que a guerra nos revolta tanto? Por que o Sr., eu e tantos outros não nos conformamos com ela assim como nos conformamos com tantas situações desagradáveis na vida? A resposta talvez seja porque todo ser humano tem direito a sua própria vida, porque a guerra destrói vidas humanas cheias de esperança, porque coloca cada humano singular em situações que lhe tiram a dignidade, que o obrigam a assassinar os outros contra sua vontade, a destruir valores, frutos do trabalho humano e outras coisas mais. Tudo isso é tão verdadeiro e tão incontestável que nós só podemos nos perguntar por que a guerra ainda não foi substituída por um acordo abrangente entre a humanidade.

A guerra contradiz escandalosamente as posturas psíquicas que a cultura nos obriga a tomar. Por isso devemos nos revoltar contra ela. Não a suportamos mais. Não se trata somente de uma repulsa intelectual e afetiva. Nós pacifistas [oferecemos contra a guerra] uma intolerância constante de extrema idiossincrasia. E me parece que o rebaixamento estético que a guerra traz não é menos responsável pela nossa revolta do que suas crueldades.

Quanto tempo é preciso esperar até que os outros também se tornem pacifistas? Não posso dizer. Mas talvez seja nenhuma esperança utópica acreditar que esses dois aspectos, ou seja, a atitude a favor da cultura e a preocupação com as consequências da guerra no futuro sejam capazes de logo pôr um fim à guerra. Quais caminhos ou desvios ainda precisam ser tomados, não podemos adivinhar. Enquanto isso, podemos afirmar: tudo que contribui para o desenvolvimento da cultura trabalha contra a guerra.

Com meu cordial abraço e pedido de perdão, caso minhas considerações o tenham decepcionado.

Seu

Sigm. Freud

Fonte: Warum Krieg? [1933] In: FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur und andere kulturtheoretische Schriften. Frankfurt am Main: Fischer, 2004.

(*) Seleção e tradução: Dorothee Rüdiger