O Jardim das Cerejeiras

Por que assistir O Jardim das Cerejeiras? 23/05/2019

Alain Mouzat e Teresa Genesini

Em cartaz desde 10 de janeiro, a peça de Anton Tchekhov, O Jardim das Cerejeiras, encenada pelo Grupo Tapa, foi uma ótima surpresa. Primeiro pela qualidade da encenação, com a qual o diretor Eduardo Tolentino e o elenco do grupo já nos acostumaram, mas principalmente pelo sucesso de público que trouxe uma sala cheia por quatro meses seguidos, e a temporada prorrogada até 2 de junho.

Por que, porém, uma peça escrita em 1904, no gênero drama burguês, encontraria tal sucesso, ultrapassando o público habitual cativo do teatro e atingindo um público jovem que, a priori, não encontraria nada de atrativo numa peça de um repertório, por certo clássico, mas de outra estética e de outros tempos?

Em meio ao mar de queixas e reclamações sobre a miséria cultural de nosso país e das novas gerações, a boa surpresa desse Jardim das Cerejeiras não poderia deixar de interpelar O Mundo visto pela Psicanálise, que foi ouvir o diretor, Eduardo Tolentino.

O Mundo – Por que encenar O Jardim das Cerejeiras de Tchekhov agora em 2019?

Eduardo Tolentino – É fácil responder: sempre, quando se pega grandes textos é possível fazer uma leitura deles. A começar pelos motivos sociais: Tchekhov escreveu essa peça em 1904, num período de limbo da política russa, mas não estava falando da política russa, e sim desse estado de limbo. Existe aí, na Rússia, uma sociedade em transformação que ainda não achou seus parâmetros, que acharia dali a 13 anos, com a revolução de 1917.  O mundo de hoje vive nesse mesmo limbo: estamos saindo da era industrial e entrando numa revolução digital, que ainda está engatinhando, com a qual ainda não sabemos lidar.  Nós vivemos num limbo social, político, estético de uma nova era que talvez nem vejo…  Mas vejo que estamos num outro mundo; o mundo em que nasci acabou…

A grande diferença da Rússia e do Brasil é que as forças culturais eram muito determinantes das mudanças na Rússia. Uma sociedade que produz Tchekhov, Dostoiévski, Tolstói, Liérmontov, Gogol, nas artes plásticas Malevich, no teatro Stanislavski, Meyerhold, na música Tchaikovsky, Rimsky- Korsakov…, essa sociedade tem uma mudança cultural visível nela. Aqui no Brasil, não. Mas eu sinto que a gente fala disso.

A peça fala também de um teatro que no Brasil acabou. Por isso a gente deixa todo o palco livre, num viés contrário do que vai o mundo. O mundo hoje vive um boom teatral, assim, se você vai a Paris, a New York, a Buenos Aires, encontra os teatros lotados fazendo releituras de peças clássicas, dando um toque contemporâneo, textos contemporâneos.

O Mundo – Essa peça é de uma estética do século XIX. Hoje, qual seria a estética, ou seja, que peça representaria as mudanças do mundo contemporâneo?

Eduardo Tolentino – Eu acho que a peça fala desse período de limbo. Por isso que acho que a peça fez sucesso. Volto à questão do que é um clássico. Quando Hamlet fala “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, a Dinamarca sempre é aqui e agora. Acho que O Jardim também é aqui e agora. Isso é o que diferencia um clássico de um texto escrito no calor da luta, o que não quer dizer que não se façam clássicos hoje, clássicos para o futuro. Sempre digo que daqui a mil anos veremos dois astronautas rasgados diante de uma árvore de metal, fazendo Esperando Godot. Giorgio Strehler, diretor italiano, do teatro de Milão, já morto, dizia que “O Jardim é como aquelas bonecas russas, que uma fica dentro da outra. Existe uma história de um cerejal que vai ser vendido; existe uma outra boneca, dentro dessa, que é a história com H, de uma Rússia num determinado momento e existe uma terceira caixa, mais sutil, que é o homem diante da sua existência”. No Tchekhov essas três caixas precisam estar presentes para que a peça exista. Voltando à pergunta, eu não vi ainda uma grande peça do século XXI, que não esteja inserida nos moldes do realismo burguês.

O Mundo – A peça está em cartaz há seis meses, com lotação total por 4 meses seguidos. Quais as razões desse sucesso?

Eduardo Tolentino – A gente nunca sabe justificar o sucesso completamente. Mas, sobretudo, o que me impressionou foi a plateia jovem. Quando fizemos o Ivanov, de Tchekhov, nos anos 90, estávamos num período democrático, com um intelectual na presidência – o tema da peça é justamente um intelectual perdido num país devastado –, toda nossa plateia era madura. Houve uma reversão agora na temporada de O Jardim das Cerejeiras. Havia jovens trazendo os pais para o teatro, o que me impressionou muito: os possíveis Lopakhin – que querem comprar tudo —, as possíveis Liubov – mulheres alienadas —; houve uma identificação muito grande com os personagens, por parte de uma plateia jovem. Quando montamos a peça, achávamos que seria a última oportunidade de montar Tchekhov, mas vimos que não, o que foi surpreendente. Acho que há um fato qualquer sociológico que aproxima essa ideia do público brasileiro de hoje. Outra questão é ter um elenco que poderia fazer os papéis, que tem uma distribuição adequada, uma coisa fundamental em teatro, todas as pessoas afinadas, querendo falar disso, desse mundo que acabou e desse mundo que está começando. Na peça tem ainda o caso do estudante, que também fala de um mundo novo, mas ele fala no discurso, não sabe como será o mundo novo.

Eu sinto que a gente vive uma mudança radical. Houve uma ruptura, uma quebra de hierarquia. Há um modelo de passagem e quando essa passagem deixa de existir, a gente tem uma quebra. Mas o modelo burguês ainda não foi superado, as pessoas ainda querem uma historinha, um princípio, meio e fim. Brecht diz que se uma história toda é explicada então não foi bem contada.

Voltando à peça, apesar de ser um drama burguês, ele tem fraturas. É um drama burguês cheio de fraturas. Existem fraturas também na encenação. Existem fraturas no texto e também no espetáculo, não é uma montagem tradicional. Fazemos uma composição estética, estamos antecipando Beckett. Essa estranheza da situação é que dá essa fratura no drama burguês e faz toda a diferença.

O Mundo – Em suma, O Jardim das Cerejeiras nunca deixará de nos interpelar….