Por Alain Mouzat
Sob o signo da graça: a mulher adúltera
Há circunstâncias, contingências, que deixam um contentamento que sabemos raro, delicado, frágil… quem viu, viu, quem não viu, perdeu. Mesmo assim, tento recuperar na escrita algo de um momento de graça.
O IPLA recebeu na última segunda-feira (18), na sua sessão clínica, Luiz Felipe Pondé, que veio falar de seu último livro, A filosofia da adúltera: ensaios selvagens (2013), publicado pela editora LeYa. Jorge Forbes, como de costume dirigindo a sessão, foi logo pintando o quadro… Pondé, professor de filosofia, colunista da Folha de S.Paulo, autor amado, provocador… e odiado, completou o convidado.
Pode ser uma filosofia provocadora, mas podemos ter certeza de que, com Pondé, ela não é irrelevante. Relevo, ela tem. Pondé tem o que faltava a Charles Bovary, cuja conversa, diz Flaubert, era chata feito calçada de rua.
Como não pensar em Flaubert? Nelson e a mulher adúltera seria uma versão carioca anos sessenta de Madame Boravy. Nelson e seu ódio ao canalha, ecoa Flaubert vituperando o burguês.
Nelson Rodrigues – não é preciso dizer – e Luiz Felipe Pondé – e aqui temos que sublinhar – são, como Flaubert, anti-modernos. O anti-moderno, por um lado, tem um papel cômodo: denunciar o que nesse mundo está errado e que ninguém quer ver; vocação de profeta, voz que alcançou a verdade que fica velada aos olhares dos não videntes, dos cegados pela conquistas do mundo moderno. Progresso, democracia, gozo inconsequente que faz o homem esquecer sua dignidade de ser mortal e incompleto. Filósofo, Pondé diz que aprendeu com a psicanálise, e com Lacan, a necessidade de cair no mundo, de entrar no debate público. Senão, para que serve a filosofia?
“Não resisto”, diz Pondé, “é mais forte do que eu”. Ele se diz dominado pelo desejo de desvelar, trazer à tona o que está escondido atrás do discurso social que tenta alisar os relevos, tampar os buracos e falhas. Mundo contemporâneo se sonhando limpinho, sem contradição, sem espaços para os fracassos e tropeços. Pelo menos outrora, diz ele, a Igreja reconhecia o lugar do pecado. Hoje não mais, querem que seja tudo politicamente correto.
O corpo amortecido pela “naturalidade” faz broxar o desejo, blasé que nem o Crioulo da Grapette na praia de Copacabana.
O amor segue o mesmo caminho: quem falou que deve trazer felicidade? Mundo irenista que acha que vai salvar uma harmonia qualquer. Amor, desejo, sexo não salvam, não são limpinhos, não fecham a conta. Aliás, é nisso mesmo que há gozo. Um sexo no qual os parceiros se respeitam é broxa.
Rousseau ganhou? Será o homem bonzinho? Sejamos sérios. Não é problema de fígado, “sou mau mesmo”, diz a voz de Dostoievsky.
Mais além da denúncia, o moralista reencontra a psicanálise; deixemos ao homem a responsabilidade de sua contingência, do seu acaso, do seu tropeço.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana