Dorothee Rüdiger
O exercício que me foi dado por Jorge Forbes durante o seminário de TerraDois é de defender a teoria de Michel Foucault contra a acusação de Luc Ferry em sua obra La vie heureuse: sagesses anciennes et spiritualité laïque. A acusação de Ferry é de que Foucault, tal como outros teóricos do desconstrutivismo, esteja contribuindo para o narcisismo da ideologia da felicidade promovida pela psicologia positiva tão em voga nesse início do século 21.
Empenhado com a tarefa de construir sua própria filosofia sobre a espiritualidade laica, Ferry faz uma série de críticas a diversos autores, principalmente, aos filósofos modernos e contemporâneos. Ele se mostra particularmente severo com a filosofia da suspeita e de seus sucedâneos, dentre eles, Michel Foucault. Ferry se refere em sua crítica a Foucault ao terceiro volume da História da Sexualidade que tem como título eloquente “O cuidado de si”. Para Ferry, as teses divulgadas por Foucault levam ao culto de si mesmo e ao narcisismo, marcas registradas da psicologia positiva.
Como defender Foucault sem entrar nos pormenores das questões da filosofia? Quem sabe, fazendo uma leitura da obra de Michel Foucault a partir de quem estudou suas teses enquanto jurista e de quem possa ensaiar uma complementação pela leitura psicanalítica.
Michel Foucault é conhecido nas ciências sociais e humanas como um dos mais importantes contribuintes para a epistemologia, a teoria do conhecimento. É um dos críticos da ciência como sendo um conjunto de conhecimentos. Estudioso da história da ciência, pesquisou em arquivos e registros históricos as discussões científicas na medicina, pedagogia, criminologia, para citar alguns exemplos de campos do saber. Assim, para quem estuda direito, a obra “Vigiar e punir” é fundamental para a compreensão do poder e da disciplina nas instituições modernas.
A mais importante contribuição de Foucault para os mais diversos campos das ciências sociais e humanas é sua filosofia do poder. Ele revoluciona o debate em torno do poder, quando diz que o poder é independente de quem o exerce, contrariando assim principalmente os marxistas para os quais o poder se concentra na mão do Estado moderno. Para Foucault o poder não só não se concentra, como também não é palpável, é “filigrano”. Está onipresente em todos, não somente nas instituições, como também na linguagem e na disciplina do corpo. O poder não funciona só por repressão. Somos todos dominados e dominadores ao mesmo tempo.
Nessa perspectiva, o conhecimento, portanto, nunca é neutro. É uma questão de distribuição de poder no direito, na política, na medicina, na psiquiatria, na pedagogia. Por outro lado, os seres humanos, suas vidas e sua intimidade são objetivados pelas ciências e suas práticas de divisão e de classificação científica. Assim, a história recente da ciência separa os seres humanos entre normais e anormais, entre sãos e doentes, entre seguidores da lei e criminosos. Essas classificações são resultado de um discurso dominante, de um exercício de poder. Elas criam identidades, porque as pessoas se reconhecem nelas. Como exemplo podemos citar a CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde). As definições e classificações estabelecidas por um corpo técnico na medicina criam uma universalidade para os diagnósticos além de uma identidade aceita por quem tem dificuldade de se dizer. “Sou borderline, e você tem que me aguentar assim”.
As ciências humanas e sociais também não escapam dessa crítica. O ser humano visto como indivíduo ou grupo é objeto de pesquisa para ser definido, classificado, curado, educado, normalizado no corpo e na mente. Como não lembrar aqui das políticas contemporâneas identitárias que, tendo sua origem na política de defesas de interesses coletivos contra o poder, correm o risco de serem repressivas e moralistas. A crítica da psicanálise lacaniana é muito próxima, quando preconiza a singularidade em detrimento da classificação e da universalização dos tratamentos cognitivos comportamentais e quando vê o corpo humano como um corpo sexuado.
A crítica de Foucault em relação à exclusão dos psicóticos em sanatórios deu sua contribuição para o movimento antimanicomial, paradoxalmente libertador, quando acaba com o horror dos manicômios e arriscado, quando precariza o tratamento. Por outro lado, como não lembrar nesse contexto da psicanálise de Sigmund Freud, para quem a psicose é uma solução para conflitos inconscientes insolúveis, e de Jacques Lacan para quem “todos deliramos”. A proximidade de Foucault com a psicanálise, no mínimo cautelosa com as classificações, salta aos olhos.
Foucault se coloca na tradição da filosofia da suspeita. Em 1975, dedica um ensaio a Nietzsche, Freud e Marx. O que autores tão diferentes teriam em comum? Os três, cada um a seu modo, denunciam a alienação. Karl Marx denuncia como ideologia alienante o discurso da classe dominante a cada momento histórico. Friedrich Nietzsche se volta contra o “niilismo” dos que abstraem ideias racionais dos afetos e da arte. Sigmund Freud chega a chocar seus contemporâneos, quando divulga sua descoberta de que “não somos donos em nossa casa da razão”. A conclusão de Foucault é que uma sociedade inteira (a moderna) se constrói e se mantém a partir do que podemos chamar de recalque do anormal, da loucura e da doença, pressupondo o reino da razão.
Como escapar do controle dos que detêm o conhecimento? Chegamos no pomo da discórdia de Luc Ferry com Michel Foucault. Este alega que os seres humanos apesar do controle sobre seus corpos e suas mentes têm um desejo de autocompreensão, de “cuidar de si”, de seu corpo, de sua mente, de sua sexualidade. Mas, como conhecer a si mesmo e o outro, como sair da alienação sem cair na cilada do “culto de si mesmo” e do “narcisismo”?
A psicanálise lacaniana dá uma resposta além da teoria da desconstrução. Na contramão da alienação, ela promove a quebra das identificações e a libertação do desejo sem, no entanto, deixar o ser humano à sua própria sorte. Apesar da desalienação e do convite às possibilidades de criação de um outro jeito de se viver a existência, a psicanálise, como ensina Jorge Forbes, não dispensa da responsabilidade por si e pelo outro e, com isso, vai na contramão do culto de si mesmo e do narcisismo.
Obras consultadas:
FERRY, L. La vie heureuse : sagesses anciennes et spiritualité laïque. Paris : L´Observatoire, 2022.
FORBES, J. Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. São Paulo: Manole, 2012.
FOUCAULT, M. Nietzsche, Freud , Marx. Trad. J. Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1997.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. L. M. Pondé Vassallo. Petrópolis : Vozes, 1986.
GARVEY, J. & STANGROOM, J. A história da filosofia. Trad. C. Cupertino. São Paulo: Octavo, 2013.
HELFERICH, C. Geschichte der Philosophie: von den Anfängen bis zur Gegenwart und östliches Denken. München: DTV, 1998.