Picasso: mão erudita, olho selvagem 09/06/2016

Por Leila Lagonegro

A exposição de Pablo Picasso em São Paulo, no Instituto Tomie Otake, mostra os Picassos de Picasso – acervo particular do artista, que nos toca pela beleza e estranheza de sua obra 

Os traços da mão erudita de Pablo Picasso que captou o mundo pelo seu olho selvagem podem, desde o dia 22 de maio, ser visitados em São Paulo no Instituto Tomie Ohtake. Ali estão os assim referidos “Picassos de Picasso”, obras que em sua maioria foram do acervo particular do artista e passaram a fazer parte da coleção do Musée National Picasso em Paris.  No percurso da visita à coleção sob a curadoria de Emilia Phillippot, temos oportunidade de entrar em contato com as diferentes fases e técnicas da produção do mestre nascido no ano de 1881 em Málaga, na Espanha, além de nos deixar tocar pela beleza e estranheza de sua obra.

Os temas abordados, as influências, os processos criativos possibilitam-nos transitar pelos estilos, modos de pintar, gestos e paletas cromáticas que dão o tom da “mão erudita” em ação. Soma-se a ela o “olho selvagem” que registra, dentre outras imagens, aquelas desoladoras, trágicas consequentes à guerra, as touradas espanholas e a estatuária africana.  

Analisar Picasso ou sua obra mereceria estudos incessantes, já que muitas são as variáveis que compõem a história de vida e as fases da expressão artística do artista. Longe, disso, vale aqui sintetizar genericamente a conexão entre a arte e a psicanálise, baseada nas ideias que têm sido propostas a partir de Freud.

Para Sigmund Freud a criação artística cabe no estatuto de uma das vicissitudes da pulsão, a sublimação. No decorrer do seu trabalho ele afirma que o artista sublima como uma forma de não renunciar ao prazer, numa defesa às pulsões. Sublimando, ao voltar-se para outra meta diferente da sexual, se dá a passagem pelo recalcamento. Jacques Lacan vai mais além, fazendo-nos perceber que a obra de arte toca o corpo. Incide sobre o gozo podendo possibilitar uma transformação da satisfação, uma experiência que toca ambas as partes: do artista e do espectador.  No livro Da palavra ao gesto do analista, encontramos a afirmação de Jorge Forbes que “a arte pode nos pôr em contato com algo nosso essencial”. E é isso que também se espera da psicanálise. Daí existirem as semelhanças entre a arte e a psicanálise. Pablo Picasso transmite a proximidade entre a arte e a psicanálise em sua obra e em suas palavras, quando comenta: “A arte é uma mentira que diz a verdade.” Quem não lembra aqui da verdade mentirosa do inconsciente visto por Jacques Lacan?

Assim, ao percorrermos as diversas secções da exposição Picasso: mão erudita, olho selvagem somos capturados por aqueles trabalhos que não se acanham em mobilizar nossos significantes.  É impossível sairmos indiferentes ao que resulta, no corpo, daquilo que o nosso desejo faz impactar.  

A exposição sugere um percurso cronológico-temático onde é possível observar diversos aspectos do trabalho do artista. “O primeiro Picasso” é marcado pela formação acadêmica clássica e as influências de artistas espanhóis como Velazquez e Goya. Já, nos anos seguintes da juventude, Picasso se deixa permear pela expressão das obras de  Gauguin, Munch, Toulouse Lautrec, passando em seguida, a partir de 1901,  à fase azul, onde as figuras são banhadas por uma luz monocrômica, triste e fria. 

Em “Picasso exorcista. Les demoiselles d´Avignon”, de 1907, nota-se a aquisição de uma nova linguagem expressiva. Aqui a construção se dá por articulação das formas básicas, pinceladas apertadas, cores terrosas, marcadas por influência de culturas primitivas (África e Oceania), onde a geometrização dos volumes tem inspiração em Paul Cézanne. Do famoso quadro, Les Demoiselles d’Avignon, motivo de tantos trabalhos em psicanálise, só é possível apreciarmos alguns estudos preliminares já que a obra original é de propriedade do Museum of Modern Art in Nova Iorque. 

A secção “Picasso cubista. O violão” mostra a evolução do trabalho do artista que em 1908 teve parceria com Georges Braque na invenção do cubismo, um trabalho de importância fundamental na arte do século XX. Da tendência à geometrização da primeira fase, segue-se uma marcante profusão de planos abertos – a “fase analítica” que na sequência evolui para a “fase sintética”. Aqui, Picasso e Braque passam a representar os elementos da composição, não como o olho os vê, mas sob vários ângulos, conforme uma possível representação mental dos mesmos.

O percurso expositivo nos leva a “Picasso clássico. A máscara da antiguidade” (1918-1923). Esta secção da exposição revela a volta aos clássicos. O artista sempre recusou rótulos que o aprisionassem em um movimento ou estilo definido. Ele se dedica novamente a estudar os antigos   mestres que junto a outros artistas europeus consideram uma “volta à ordem”  após a grande matança da Primeira Guerra Mundial que dizimou, física- e ideologicamente, a vanguardas artística. 

Em continuação chegamos a “Picasso surrealista. As banhistas”. Em 1924 surge o “Manifesto Surrealista” de André Breton. Picasso, embora não se identificando com aquele movimento, direciona-se a criar uma proposta alternativa à imitação ilusionista da realidade, o que o faz envolver-se em outros processos de experimentação que ocorrem entre 1928 e 1932. Representam uma significativa contribuição ao desenvolvimento e desdobramentos do surrealismo. Nesta fase, aquele tema clássico da banhista tem a assinatura de Picasso nas imagens de criaturas de anatomia decomposta chegando até, em muitos trabalhos, a fazer alusão ao feminino por meio de formas fálicas, como que invertendo a identidade sexual das mulheres da praia. Evidencia-se aqui um estranhamento celebrado pelo surrealismo. 

“Picasso engajado. A Guernica”. É a partir de 1936 que sua arte se engaja na luta política, um tributo à história contemporânea. Ele pinta  Guernica como reação ao bombardeio da cidade basca pela aviação nazista em abril de 1937. Nesta secção da mostra é possível apreciar é a documentação fotográfica das diferentes etapas e a metamorfose da composição ao longo da realização da obra.  “ Não pintei a guerra porque não sou o tipo de artista que sai, como um fotógrafo, à procura de um tema. Mas sem dúvida a guerra está presente nos quadros que pintei naquela época,” disse Picasso.

“Picasso múltiplo. A alegria da experimentação” é a secção da mostra que nos possibilita ver no artista a alegria de experimentar outros materiais, aliás, uma característica dele (1946) a de estar sempre pronto a aprender novas técnicas e habilidades. Belos trabalhos em gravuras e cerâmica. 

Em “O último Picasso. Triunfo do desejo”, uma secção que tem por marca gravuras e pinturas nas quais se pode observar a gestualidade expressionista liberada, as figuras são realizadas com pinceladas largas e é possível notar o erotismo escancarado no crepúsculo da vida de Picasso. 

Leila Lagonegro é Psiquiatra e Psicanalista. Artista plástica da Contempoarte.

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