Por Fernanda de Magalhães Dias Frinhani
Privados de cidadania e de direitos têm visto cada vez mais sua existência vulnerabilizada, uma vez que as normas internacionais vêm sendo constantemente relativizadas
Não ter para onde ir em tempos de globalização, nos quais as fronteiras estão abertas para nós, que já nos sentimos cidadãos do mundo, é , nesse momento, a causa de angústia de 5 milhões de Sírios e Iraquianos fugitivos de uma guerra, cujas dimensões mal conseguimos dimensionar. Recentemente, essas pessoas, forçadas a fazer do mundo sua casa, foram apenadas com um acordo entre a União Europeia e a Turquia que tem como efeito barrá-las ante as fronteiras do Velho Continente.
A recusa da Comunidade Europeia em acolher os refugiados Sírios que buscam proteção fora das fronteiras turcas se materializou em acordo firmado pela Comunidade com o governo turco, que define que “todos os imigrantes irregulares que chegarem da Turquia até as ilhas gregas a partir de 20 de março de 2016 serão devolvidos à Turquia”. Essa devolução, tratada como legal e respeitosa ao direito dos refugiados, pode estar rompendo de maneira incisiva com um princípio fundamental: o direito ao non refoulement, segundo o qual nenhum dos Estados Membros “expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada”.
O anseio por um mundo globalizado, sem fronteiras e acolhedor aos estrangeiros e capaz de lidar com diferenças culturais parece cada dia mais distante de se concretizar. Negando aos refugiados o direito de buscar abrigo em regiões com melhores condições de vida, a globalização está se revelando como seletiva. Inclui aquilo que se mostra conveniente aos propósitos de favorecer a circulação de mercadorias e de capital. Neste viés, a circulação de pessoas só convém quando traz consigo vantagens econômicas.
Não é o que acontece com um enorme contingente de seres humanos expulsos de seus espaços de pertencimento originais em razão de fundado temor de perseguição, provocado por conflitos dentro de seus países. São pessoas que se veem obrigadas a procurar socorro e proteção em outras terras, ressignificar seu modo de vida e, lutar com todas as forças, por uma existência possível. Quando migram, não são cidadãs de lá, ou de cá. São, como designa Zygmunt Bauman, “supérfluos, descartáveis”. Privados de cidadania e de direitos têm visto cada vez mais sua existência vulnerabilizada, uma vez que as normas internacionais vêm sendo constantemente relativizadas, mostrando quão frágil é a definição do direito à igualdade de tratamento entre os indivíduos, em espaços onde a proposta era agrupar Estados e abrir fronteiras, como é o caso da União Europeia.
A crise provocada pelos conflitos armados na Síria desde 2011 colocou 13.5 milhões de pessoas em situação de necessidade humanitária. Neste universo, aproximadamente 5 milhões de pessoas conseguiram sair da Síria e solicitar refúgio em outros países, sobretudo nos países fronteiriços como Líbano, Jordânia, Irã e Turquia, mas também em países do norte da África como Líbia e Egito. Mas estes países não apresentam perspectiva de futuro para a maioria dos refugiados, que começaram a buscar acolhida em países da União Europeia. A partir daí, a crise dos refugiados sírios passou a interessar a comunidade internacional.
Duas rotas principais levam os refugiados para a Europa: da Líbia para a Itália e da Turquia para a Grécia. Deste modo, Grécia e Itália são os países da União Europeia que mais recebem refugiados. Mas, pelos mesmos motivos, os refugiados não querem ficar nestes países. Pretendem migrar para onde haja maiores e melhores condições de trabalho. Mas existe um porém: o Acordo de Dublin, segundo o qual o pedido de refúgio deverá ser feito no país de entrada. Assim, a solicitação e, consequentemente, a proteção, acolhimento e integração dos refugiados deve acontecer no país de entrada da União Europeia.
É fundamental que se compreenda que a definição jurídica de refugiados foi cunhada em 1951 pela Convenção de Genebra Relativa ao status de Refugiados. Tinha como principais destinatários cidadãos europeus que, em razão dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e que tivessem que sair de seu país de origem e em razão do temor, não pudessem a ele retornar. Este conceito foi ampliado em 1967, com o Protocolo relativo ao status de refugiado, que rompeu com as barreiras temporal e espacial, o que permitiu que a condição de refugiado não fosse mais uma prerrogativa de europeus.
A partir de então a Europa passa a ser não mais região de origem dos refugiados, mas região de destino. E isso nunca havia ficado tão evidente até a Crise Síria. O crescente fluxo de refugiados que passa a chegar à Europa a partir de meados de 2014 acende o sinal vermelho da Comunidade Europeia sobre se irá acolher e como irá acolher essa leva de migrantes. Mostra o fracasso da comunidade internacional em compartilhar a responsabilidade em acolher os refugiados, como foi proposto em 1951. Mostra o interesse da União Europeia em livrar-se de um problema que não entende ser eu. Enquanto os refugiados Sírios não cruzavam as fronteiras europeias, era como se não existissem.
Mas existem. São Milhões de pessoas que, uma a uma, sofre a angústia de não saber onde se abrigar, o que comer, o que vestir e como desenvolver suas capacidades culturais. Necessitam não só de ajuda humanitária. Estão à procura de oportunidade de continuar suas vidas em locais seguros e que viabilizem sua existência como homens e mulheres. Em tempos de globalização, nos quais sentimo-nos cidadãos do mundo, a existência de quem é obrigada a refugiar-se longe de casa deveria ser garantida pelo direito ao reassentamento. Está na hora de criarmos condições jurídicas para proporcionar aos refugiados possibilidades de inventar vida nova em um terceiro país, isto é, não no país que o expulsou, nem no país ao qual primeiro chegou, mas num país que possa, de fato, garantir a sua retomada à vida. Se somos cidadãos do mundo compartilhando seus benesses, temos a responsabilidade de compartilhar também seu ônus acolhendo quem necessita reinventar sua vida em nosso meio. Infelizmente, isso a União Europeia não tem se mostrado interessada em fazer.
Fernanda de Magalhães Dias Frinhani é doutora em Direitos Humanos pela USP, professora universitária, membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello e do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Vulnerabilidades na Universidade Católica de Santos.
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