Parece ficção científica 17/12/2015

Por Dorothee Rüdiger

NOTA PRÉVIA

O IPLA-Instituto da Psicanálise Lacaniana tem se dedicado a pesquisar as modificações subjetivas e do laço social, na pós-modernidade. Essas pesquisas se baseiam na Clínica do Real, de Jacques Lacan, para uma psicanálise do Século XXI, uma psicanálise do “Homem Desbussolado”.

Nesse caminho, temos desenvolvido estudos e pesquisas teórico-clínicas dos efeitos do confronto da psicanálise com a revolução NBIC. Essa sigla, ainda pouco conhecida, em breve será muito debatida. Ela se refere a quatro revoluções tecnológicas que se alimentam sinergicamente: Nanotecnologia, Biotecnologia, Informática, Cognitividade, criando um futuro impactante, chamado por alguns de transumanismo (outra das novas palavras).

Publicaremos, a partir de hoje, nesta Newsletter, algumas notas desse estudo em andamento no IPLA e no Projeto Análise.

São Paulo, 3/12/ 2015

Jorge Forbes

PS: Já foi publicado, na última edição, 143, de O Mundo visto pela Psicanálise,  o texto de Claudia Riolfi, Da “Medicina 4P” para a “Psicanálise 4S e na edição 142, o texto de Alain Mouzat, Transumanismo, transgressão em grande velocidade …

———————————————————————————————————————–

Parece ficção científica

Os cenários do destino da humanidade projetados pelo cinema para um futuro não tão distante, nos filmes Blade Runner, Gattaca, Matrix e Transcendence, para nomear algumas das obras da sétima arte, podem tornar-se bem reais. Essa, ao menos, é a impressão que fica depois da leitura do capítulo que o médico Laurent Alexandre, em seu livro La mort de la mort, dedica à biopolítica e à “pulverização do Estado-previdência”.

Baseando-se em fatos contidos em artigos científicos acerca da nanotecnologia, biotecnologia, informática e cognitividade (NBIC), o autor discorre a respeito de quatro desafios que se apresentam para a humanidade no século XXI. Trata-se de desafios para nossa liberdade, para a segurança, a saúde e para a economia.

Como evitar cenários assombrosos que se desenham em filmes como Matrix, que assusta com a realização de um sonho de poder totalitário? Eis o primeiro desafio. Os cenários de exercício de poder por um Big Brother ou uma Big Mother, uma Matrix, já estão a nosso alcance. Tal como no romance 1984, de George Orwell, convivemos já sob a mira de câmeras de segurança espalhadas pelos quatro cantos do mundo. A tecnologia do GPS nos localiza em segundos onde estivermos. Estamos interconectados por redes sociais que permitem uma verdadeira devassa em nossas vidas privadas. Agora, com nossos biodados em mãos de um Estado do tipo Big Brother que tudo vê, tudo sabe, tal como no filme de ficção científica Transcendence, nossa liberdade corre sérios riscos.

Hoje, já somos controlados por um Estado social que, com a melhores das intenções, tal como uma Big Mother, vigia nossos hábitos. Beber, fumar, comer além da conta? Nem pensar! A vigilância sanitária, tal qual um superego materno, está de olho. Se no Estado do bem-estar social já somos transparentes para a vigilância sanitária, as biociências e tecnologias vão nos deixar mais transparentes ainda. Psicólogos vão interpretar nosso comportamento a partir de dados das redes sociais, biólogos podem, feito cartomantes, interpretar nosso genoma e epigenoma, neurocientistas podem fazer um mapa de nosso cérebro e ver o que se passa em nossas mentes. Podem muito bem nos manipular. E quando, daqui a alguns anos, haverá a possibilidade de implantar microchips no cérebro humano, curar doenças com a nanobiotecnologia e selecionar seres humanos geneticamente perfeitos antes que sejam implantados no útero de suas mães, corremos o perigo de sofrer um controle em nossas vidas digno daquilo que acontece no filme Gattaca. Em nome da saúde pública, será imoral e, portanto, mal visto fazer um bebê à moda antiga.

O que fazer diante de tal cenário assustador? O que fazer diante do risco de eventuais acidentes com os nanorobots que, ao invés de curarem doenças, podem espalhar vírus informatizados pelo nosso corpo, podem escapar do controle da humanidade, proliferar e infestar tudo que é vida? O que fazer diante da possibilidade não tão remota de criarmos novas e profundas desigualdades sociais entre os transumanos bem-nascidos, inteligentes, belos e imortais e os nascidos de qualquer jeito, retardados, feios, enfim, reles mortais?

Como cidadãos, membros de uma sociedade civil mundial e, principalmente, como psicanalistas somos chamados, desde já, para participar da tarefa da elaboração de um novo pacto social que possa se basear naquilo que Jorge Forbes, a partir da posição da psicanálise contemporânea, chama de “um novo amor”. Será necessário. O velho pacto entre gerações, que previa que os mais novos sustentassem os mais velhos pelo sistema de saúde e da previdência social, já está rompido. O welfare-state não consegue, há anos, manter o sistema de aposentadorias e da saúde pública. Com a tecnomedicina e o tratamento dos mais novos para prevenir doenças ou curar doenças genéticas desde cedo, essa crise tende a se agravar. Estamos diante da questão de como financiar as benesses da tecnomedicina para todos. O novo pacto social exige formas de solidariedade dos mais velhos para com os mais novos. Estaremos aptos, como mais velhos, a sacrificarmos, por exemplo, uma velhice tranquila e sem trabalho pelo amor aos nossos filhos e netos? Haverá um novo pacto entre os que gozam de saúde e os que necessitam, desde jovens, das novas tecnologias para viver?

A nova civilização biotecnológica é capaz de nos incomodar, nos causar mal-estar, como diria Sigmund Freud. Se não fosse assim, os filmes de ficção científica com seus cenários apavorantes não fariam tanto sucesso. Mais do que nunca, como seres humanos, estaremos sujeitos aos limites que a civilização nos impõe. Mas, como também diz Sigmund Freud, cada geração tem sua chance de tirar o melhor dessa situação. Está agora em nossas mãos decidirmos se nossa sociedade futura vai ter um cenário a la Matrix ou Gattaca ou se a biotecnologia pode criar outro cenário.

Cada um de nós será chamado para, diante das novas conquistas da ciência e tecnologia, criar um novo cenário. Deixar a sociedade mais solidária, e, porque não, mais feliz. Assim poderemos usar a biotecnologia para curar doenças tais como a doença de Alzheimer, um pesadelo bem concreto que assombra a velhice de todos. Podemos desenvolver novas tecnologias menos predatórias do meio ambiente natural e até recuperar áreas hoje devastadas pelas consequências da sociedade industrial.  Cada um de nós poderá encontrar a cura para as malesas que nos impedem a ter uma vida produtiva e criativa por longos anos.

Se quisermos nos beneficiar das benesses da biotecnologia, e não abrir mão delas, como querem alguns ecologistas radicais, está na hora de arregaçar as mangas: participar dos debates dos riscos e benefícios das novas tecnologias, criar novos direitos tais como um habeas data sobre nossos biodados, conquistar novos espaços para a influência da sociedade civil sobre o Estado. Estará na mão de cada um de nós e de nossas redes e organizações a responsabilidade do bom uso da ciência e tecnologia. Assim, fantasias hollywoodianas podem, ainda por muito tempo, continuar a nos divertir nas salas de cinema.

Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo

Deixe um comentário