Por Dorothee Rüdiger
Como chamar à responsabilidade jovens capazes de cometer crimes chocantes? Questão que pede uma tomada de posição pelo legislativo, pela população e pelos psicanalistas
O Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, fez 25 anos em meio à polêmica sobre a redução da maioridade penal. Por hora, para a maioria da Câmara dos Deputados, deixar a legislação do jeito que está, significa fazer com que adolescentes capazes de cometer crimes graves permaneçam impunes. Mas, há protestos. Para uma minoria entre a população e os representantes do povo, a legislação em vigor basta para dar conta da ressocialização desses jovens. De acordo com o ECA, a legislação (ainda) em vigor, os adolescentes podem sofrer medidas punitivas e socioeducativas em instituições tais como a Fundação Casa paulista.
Como chamar à responsabilidade jovens capazes de cometer crimes chocantes? Questão que pede uma tomada de posição pelo legislativo, pela população e, destaco, pelos psicanalistas. Afinal, sabemos, desde que Sigmund Freud publicou, com Joseph Breuer, seus primeiros estudos sobre a histeria, que seres humanos são perigosos.
Padecemos de desejos assassinos, tais como o da jovem Elisabeth von R. que, com a morte da irmã, vê seu caminho livre para casar com o cunhado viúvo. E quem é o Rei Édipo a não ser um parricida que realizou o que, segundo Sigmund Freud, inconscientemente, todos nós gostaríamos de realizar, se não fôssemos impedidos pela lei do pai e da civilização? O que nos mantém dentro da normalidade é, para Freud, uma instância psíquica, o superego que nos enche de sentimentos de culpa, cada vez que ousamos transgredir as normas. Todos nós, crianças, adolescentes e adultos, vivemos às turras com a lei. Basta ver os sinais de pneus nas estradas perto dos radares. Passamos facilmente dos limites, quando estamos fora do alcance do olho da lei.
A questão, hoje, é o que fazer numa sociedade, na qual a lei do pai não pega mais e na qual o superego que pune está cedendo a um superego que manda gozar por toda lei. Muitos dos atos violentos chocam a sociedade justamente porque não fazem sentido, são consequência daquilo que Jorge Forbes, em sua obra Inconsciente e Responsabilidade, chama de desbussolamento. Quem não se lembra do caso de Susanne von Richthofen? A menina bonita e certinha que mandou massacrar seus pais. A lei penal não impede a ninguém de cometer atos violentos. Apesar da lei ainda “restringir o gozo”, como diz Jacques Lacan no Seminário Mais ainda, ela por si só resta letra morta sem a atitude de cada sujeito de direito, seja adulto, adolescente ou até criança. Lá, onde a lei não pega mais ninguém pelo sentimento de culpa, sobra, pelas palavras de Jorge Forbes “responsabilidade além da lei”.
Um exemplo clínico que pode ser citado aqui é o caso de um jovem que foi praticamente arrastado pelos pais para o tratamento na Clínica Psicanalítica do Centro de Estudos do Genoma Humano. Revoltado e autor de pequenos delitos, apresentou-se a Jorge Forbes dizendo: “Devo fazer análise”. Veio então a pergunta do analista: “Você deve ou você quer?” e o imediato corte da sessão. Esses dois manejos mudaram o rumo da sua vida. Forçado a tomar uma atitude para além do dever e da culpa, o paciente abandonou a revolta. Aproveitou a chance, fez psicanálise e tornou-se adulto.
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a possibilidade de tratar crianças e adolescentes que infringem a lei penal com medidas socioeducativas que incluem, dentre outras, tratamento psicológico. Abre possivelmente o caminho para um tratamento psicanalítico para além da culpa que seria uma forma de tratar jovens infratores da lei sem “passar a mão na cabeça”.
Aliás, a ideia de tratar pessoas que cometeram delitos com psicanálise e contribuir, assim, para sua ressocialização, não é nova. Foi defendida, em 1919, pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi. De lá para cá passaram-se quase 100 anos. Quem sabe, a atual polêmica a respeito da maioridade penal possa servir para tirar, no Brasil, seu projeto da gaveta.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo