Por Claudia Riolfi
A lição de Guimarães Rosa, rememorada no título deste artigo, pode ajudar os educadores que alegam estar sendo agredidos verbalmente por seus alunos. Quando manejada a favor do professor, a irreverência do adolescente pode, inclusive, se tornar um instrumento pedagógico
TAKE 1:
Segundo levantamento recente, feito pelo Datapopular, a pedido do Sindicato Estadual dos Professores – APEOESP, 44% dos professores afirmaram terem sido vítima de algum tipo de agressão (física, verbal ou assédio), nos colégios em que lecionam. A rede estadual de ensino em São Paulo tem 230 mil professores, dos quais 1.400, em 167 cidades paulistas, foram ouvidos. Na mídia, as explicações dadas ao fenômeno são praticamente uníssonas: a violência na sociedade, a suposta desestruturação familiar, a falta de educação dada pelos pais, e, para os mais “avançados”, pode ser explicada pela reação dos jovens frente à falta de qualidade de ensino e ao autoritarismo da instituição escolar. Coerente com estas hipóteses, o governo de São Paulo pretende responder ao fenômeno com o aumento da vigilância: prometeu aumentar o número de escolas que conta com sistemas de monitoramento de câmeras. 65% dos que alegam terem sofrido agressão são homens que lecionam no ensino médio.
TAKE 2:
No âmbito da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, uma das que ministro na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, decidi interrogar alunos do ensino médio em busca daqueles que, na avaliação deles, são os melhores professores da cidade de São Paulo. Curiosamente, foram apontados aqueles que lecionam em colégios cujos resultados obtidos nos rankings, tais como aprovação no vestibular, são altíssimos. Os “bons” são os que sabem ensinar. Entro em detalhes. Como os melhores professores se comportam na relação com seus alunos? Ai, meu pai! Quanta irreverência! Exemplifiquemos com Zé, 50 anos, casado, pai de três filhos. Culto, inteligente e atualizado, Zé é professor de literatura do último ano do ensino médio. Trabalha em escolas que lhe permitem ter renda muito alta. É venerado pela moçada. Se necessário, dariam, de bom grado, um braço por ele. Como isso se manifesta? Todas as manhãs, os alunos o esperam no corredor gritando: Bicha! Bicha velha! Bicha gorda! Entram juntos. Os alunos sentam e Zé se dirige ao centro da classe. Após o bom dia, afirma, gaiato aos rapazes: Nem adianta querer dar pra mim, não gosto de virgem. Então, completa, para as moças: Meninas, se depender dos garotos desta turma, vocês estão fudidas, quer dizer, nunca serão fudidas! Todos gargalham. Depois se calam, liberados das tensões das aulas anteriores. Quando a aula começa, ninguém pisca. Eventualmente, se um aluno se perde, pode ser que diga: A bicha velha poderia fazer o favor de retomar esta parte? Zé não vacila um segundo. Retoma, mas criativamente. Nunca se repete. Tive oportunidade de ler as anotações de suas aulas e, de bom grado, eu mesma as assistiria. Nem me importaria de fazer parte do comitê de recepção.
FINALMENTES:
One man´s meat is another man´s poison, they always say. Este ditado inglês, cuja tradução livre seria algo como “O filé de alguns é o veneno dos outros” vem bem a calhar se compararmos as duas perspectivas apresentadas. Na primeira, moralista, espera-se que a solução venha da proibição do gozo por meio do controle externo. Na segunda, responsável, a pessoa age para torcer o gozo ao seu favor.
Zé eleva os “insultos” que lhe são dirigidos à protagonistas de sua aula, e, ao fazê-lo, transforma o conjunto de seus alunos em “virgens”. É como se dissesse aos colegiais: enquanto prazeres mais substanciosos não chegarem à vida de vocês, bóra lá estudar literatura. Está bem menos preocupado com o que lhe dizem e, bem mais, com o que se propõe a ensinar. Caso alguém instalasse câmeras perto dele, só se fosse para registrar o brilhantismo de seu desprendimento e inventividade.
Não estou aqui defendendo a receita do Zé. Pessoalmente, inclusive, não teria a mínima paciência de ser recebida com gritos todos os dias. O louvável é sua decisão de ensinar acima de tudo e seu desdobramento: incluir a suposta “violência” como recurso pedagógico. É de tirar o chapéu.
Claudia Riolfi é psicanalista e cursou pós-doutorado em Linguística na Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis. Professora na Faculdade de Educação na Universidade de São Paulo. Diretora Geral do IPLA.