Uma reflexão sobre o ator e o analista
Letícia Genesini
“A cada noite, o teatro nos desafia
a recriar o que parece igual,
mas que nunca será o mesmo”
Peter Brook
O Espaço Vazio
“Do que nós gostamos no teatro?
Talvez seja que cada encenação demonstra
como a mesma cadeia significante é dobrável
e que não há monumento da linguagem
que a equivocação e a anfibologia
não corroam, não metamorfoseiem.
Consolamos os autores de lhes erigir estátuas,
mas o sentido, o primeiro, está perdido.”
Jacques-Alain Miller
Teoria de Lalíngua
Por duas noites, em junho de 2024, Bete Coelho deu ao auditório do IPLA os contornos de um teatro. “No Palco com Bete Coelho” mostrou, ao público de psicanalistas e estudantes de psicanálise, as linhas guias do percurso — do Texto à Cena — do trabalho do ator. Ou seja, como, partindo da leitura de um texto teatral, o ator leva as palavras presentes no papel, antes de um autor, para a fala, para o corpo e para o espaço cênico.
O encontro dispensa justificativas. Não é preciso enumerar as muitas razões para se dedicar algumas noites ouvindo Bete Coelho falar de Teatro. Nós, que fazemos parte do grupo de sujeitos perpetuamente fascinados por essa invenção humana, estamos sempre ávidos por espiar por trás da cortina, na esperança vã de entender de que matéria tudo isso é feito, por qual delírio, magia ou milagre uma pessoa, ou um grupo de pessoas, dotadas apenas de fala e corpo, erguem perante nossos olhos esse lugar, que subverte os espaços comuns, e que chamamos de Teatro.
Podemos ainda sim, lançar a questão: a que serve ao psicanalista o saber do ator?
Ambos, diz a palavra, interpretam. Nessa intermediação do sentido, ambos, ator e psicanalista, sabem que um texto não encerra a posição de todas as peças do jogo. Que, ainda que o autor tenha colocado precisamente cada vírgula e ponto final, resta uma fresta. Ambiguidades marcadas no papel podem ser evidenciadas ou resolvidas ao serem postas em cena. E caminhos traçados podem ser percorridos ou abandonados com uma simples interjeição. Nesse tabuleiro de possibilidades, há um reiterante espaço para escolha. Nessa instância, pode-se dizer também que ator e psicanalista operam na incerteza, que ambos sabem que, ao pé da letra, o texto não guarda sentenças completas e, que a palavra, coisa feita de matéria flexível, varia.
Para além de todos os paralelos traçados por esses ofícios tão distintos, há ainda um ponto comum, ao qual ator e psicanalista não podem prescindir e ou renunciar: a sua presença.
Bete Coelho foi inequívoca: o corpo do ator não é um mero recurso à disposição, uma carta na manga para ser usado quando propício, ele é incontornável. Ele está sempre posto em jogo, pelo simples fato de que, no palco, o ator está completamente às vistas da plateia. Não há uma câmera que guie o olho, ou que delimite o enquadramento. Ao pisar no palco, o ator está, ele todo, em cena. E por essa ausência de recuo ou fuga, o ator se confronta com questões que, na vida comum, delegamos ingenuamente ao nível do automatismo. Basta se colocar nos limites da coxia que um ator se vê frente a frente com a estranheza de seu corpo e se coloca a questão: como se atravessa um palco?
O corpo do analista também está em jogo. Ele pode não estar sempre posto aos olhos do analisando, como compõe o clássico setting analítico (ou pode sumir em uma videocâmera fechada) mas não é um corpo que inexiste, de terno cinza, neutro, nada mais que um conjunto de palavras emitidas atrás de um divã. Aliás, se Freud, como dizem, adotou o divã para se privar do olhar de seu analisando, foi também ele que recebeu Kardiner em uma estação de trem, e que escutou Katharina quando de férias nas montanhas. Não, um analista não opera por sua neutralidade.
Em 2009, Jorge Forbes atende, na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano, na Universidade de São Paulo, um homem de 38 anos, que sofria de ataxia espinocerebelar, uma doença genética e degenerativa de alta gravidade, que leva a uma progressiva paralisia dos membros superiores e inferiores. Segundo a apresentação da médica responsável pelo caso, o paciente estava “muito deprimido, a ponto de querer se matar; que não toma banho há uma semana; que rompeu o contato com toda a sua família; que perdeu o emprego e que, finalmente, foi abandonado por sua mulher há dois dias”.
Em seu relato, estabelecido no texto “Não tenho a menor ideia”, Jorge Forbes escreve:
Recebi-o na sala, sem mesmo ter coragem de usar o habitual: – ”Como vai?”. Preferi uma dessas expressões fáticas, de menor significação, para cumprimentá-lo: – “Bom dia. E então?”
Eu estava sentado muito próximo a ele, provavelmente a uma distância de um metro e meio, em uma cadeira dessas de escritório, que têm rodas. Ao meu – “E então?”, ele contesta: “Doutor, será que o senhor tem alguma ideia, Doutor, do que é a cada manhã, ao acordar, entrever, aflito, a porta do banheiro do meu quarto, que não é muito distante – moro num apartamento pequeno – e aí, Doutor, pegar a bengala que dorme a meu lado, palpar com dificuldade o seu punho e ainda ali, deitado, ficar me perguntando se ainda serei capaz, naquele novo dia, de dar os passos necessários entre a minha cama e o banheiro? Doutor, o senhor tem uma ideia do que seja isso?”
Aproximei ainda mais minha cadeira. Ficamos cara a cara, e, nessa posição, lhe disse com firme clareza: – “Não tenho a menor ideia”. Os vinte segundos que se passaram antes de uma nova reação me pareceram vinte minutos, ou mesmo vinte horas. Fiquei em dúvida se ele me agrediria. Passado esse longo tempo de silêncio, ele me disse: “De fato, Doutor, o senhor não pode ter a menor ideia.” Foi um alívio, diria, para ambos. Para mim, ver que ele suportava uma posição que não fosse a tão esperada compaixão. Para ele, possivelmente, o alívio da pesada carga dos semblantes, dos papéis sociais que uma pessoa, nessa condição, carrega, em uma paradoxal demonstração de morte ambulante para poder sobreviver. Acrescentei: – “Mas o senhor pode me contar”.”[1]
Posta em discussão em inúmeras aulas e seminários, a frase “não tenho a menor ideia” foi um bisturi preciso para romper a expectativa de compreensão e abrir a possibilidade de uma análise. Mas também o foi a postura do analista que, de modo incisivo e duro, se aproxima do paciente. Não precisamos traçar as explicações atrás do cálculo do analista para saber, sem a possibilidade de dúvida, que as mesmas palavras não teriam o mesmo efeito sem o jogo de corpo.
A questão aqui não é buscar sentido no corpo do analista. Nesse jogo, o corpo não está lá para completar o sentido, não é uma pontuação, é um corte, como distingue Jorge Forbes em seu livro “Da Palavra ao Gesto do Analista”[2]:
“A pontuação é uma prática que incide na verdade contextual, incide na língua mesma, gerando novos sentidos. O gesto é um elemento de corte. Coloco o gesto no isolamento do significante, não fazendo mais o significante representar o sujeito, mas marcar um ser.” (FORBES, 2015, p.53)
Não há semântica nesse gesto, ele é da dimensão do ato.
Não há semântica também para quem faz o gesto. Há um cálculo, como há um olho clínico, que um analista deve sustentar, mas a explanação sobre o ato só pode ser construída a posteriori. E é desse saber sem possibilidade de sentido que o analista não escapa. Assim, como o corpo do ator em cena, o analista não tem recuo ou fuga, ele age o tempo todo — coloca o psicanalista Serge André.
“O que é preciso compreender é que o psicanalista age o tempo todo. Ele está sempre no ato, mas não o sabe. Não há, pois, salvação possível na abstenção. O esforço a ser feito não consiste em buscar qual o ato que deverá ser efetuado, mas antes em descobrir que tudo o que o psicanalista faz é um ato, ao menos potencialmente. Quando fala, suas palavras não são só palavras, elas são atos. Quando se cala, seu silêncio é um ato. Quando se mexe ou quando fica imóvel, quando escuta ou quando dorme, ele age. O que quer que faça ou não faça, sua presença, a forma de sua presença, a tonalidade de sua presença, exercem seus efeitos. O psicanalista não pode não estar presente. Ele não pode escapar ao fato de que age, em si, sem mesmo o querer.” (André, 1996, р. 22)[3]
Do mesmo modo em que “O ato não é um conteúdo, ele não tem conteúdo. É um vazio.” (FORBES, 2015, p.74), o analista não opera a partir de seu conteúdo, a partir de uma essência — a não ser a partir do vazio estrutural da essência humana. O que é colocado com precisão nos dois primeiros pontos do decálogo de Jorge Forbes “Ser Analista”[4]:
É valer mais quando não se é que quando se é.
É emprestar palavra, corpo e ser para ser feito do que se quiser.
Poder ser feito do que quiser não é habilidade da matéria neutra. O que é neutro está fora do jogo — ausente —, é inerte, estático, invariável. Sim, o analisando buscará completar o sentido não só do olhar, como pontuou Freud, mas também de todo gesto do analista. O terno cinza, porém, não evita isso. A única saída ao incessante pedido de reconhecimento e completude é pela tangente, pela reiterante impossibilidade de um pacto, na qual, o analista, sempre fora da complementariedade do sentido, se coloca para o analisando no lugar do Real.
Voltando ao encontro com Bete Coelho, apenas duas noites não bastaram. Fica o pedido de mais — Encore.
[1] “Não tenho a menor ideia” – Conferência de Jorge Forbes apresentada no VIII CONGRESSO da EBP -ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE: “O ANALISTA E OS SEMBLANTES” – Florianópolis, 3 e 4 de abril de 2009: http://jorgeforbes.com.br/nao-tenho-a-menor-ideia/
[2] FORBES, Jorge. Da Palavra ao Gesto do Analista. 2ª Edição. Barueri, SP. Ed. Manole, 2015.
[3] Também citado por Forbes em “Da Palavra ao Gesto do Analista” (p. 74).
[4] Ser Analista – http://jorgeforbes.com.br/ser-analista/