Paixão de Lacan 22/04/2021

Philippe Sollers

Lacan definia a si-próprio como um dos últimos self-made-man, uma espécie de santo imperfeito que, por isso mesmo, obstinava-se a suscitar outros no meio da psicanálise. Freud tendo fundado o único verdadeiro convento, a única verdadeira escola ou sociedade secreta, sua descoberta seria continuamente recoberta, diminuída, desviada pelo conformismo ambiente, os interesses locais, a rotina. Um monge francês bizarro e zen se levanta então e fala: Lacan. “Na verdade, o santo não se considera cheio de méritos, o que não significa que não tenha moral. A única coisa chata, para os outros, é que não se percebe para onde isso o leva”.  E ainda: Quanto mais santos, melhor, esse é meu princípio, ou até mesmo a saída do discurso capitalista – o que não constituirá um progresso, se for apenas para alguns“.

Mais de vinte e cinco anos após essa fala, o discurso capitalista está a toda e se chama mundialmente soberania da Técnica. Nessas condições, no que a psicanálise está se tornando? Cada vez mais no que deixava antever seu sono anglo-saxão. Redução da linguagem à comunicação, adaptação do indivíduo ao entorno social, evacuação da História, acento colocado nas “relações humanas”, apagamento do inconsciente assim como da sexualidade. Marx gerou uma gigantesca máfia policial, Freud um continente de educadores comerciantes. O fariseu e o lojista só nos interessam por sua essência comum, fonte das dificuldades que um e outro têm com a palavra”.

É isso, estamos em Roma, em setembro de 1953. A conferência de Lacan se intitula “Função e campo da fala e da linguagem”. Sua navegação solitária começa. Ele será o herege mor da igreja analítica, o demo, o rompedor do consenso da interpretação, o sedicioso, o encrenqueiro, o questionador, o aporrinhador. Excluído da comunidade analítica, ele ousará se comparar com Spinoza. Tudo lhe será censurado: seu jeitão, sua insolência, sua cultura filosófica, sua fala sem papas na língua, suas famosas “sessões curtas”, seu seminário aberto a todos, a desordem que introduziu na universidade e nos divãs, sua vida de grande burguês cínico, suas tiradas permanentes contra o ovino conformismo geral, em suma, seu estilo. Alguém que diz “eu”, e deste modo, que blasfêmia! Quem ele acha que é? Um novo Cristo?  Não falta muito, aliás as alusões abundam.

Todos nós seríamos mais ou menos alienados à imagem do inferno das neuroses, das perversões, das psicoses, e os tratamentos químicos seriam apenas curativos em pernas de pau. Tudo seria feito, a cada instante, para esquecermos a ciência da censura introduzida por Freud, e biologizar assim a essência do ser falante que é chamado de homem (doravante fabricável, como todos sabem).

O mais estranho, nessa vontade de obturação, é constatar o descuido para com a linguagem mesmo, com suas voltas e contravoltas, sua nervura, sua pontuação física. “A palavra é um dom da linguagem, e a linguagem não é imaterial. É corpo sútil, mas é corpo.” E Lacan vai nos mostrando as palavras em ação nas imagens corporais, gravidez da histérica, labirinto do neurótico obsessivo, brasões da fobia, enigmas da inibição, encantos da impotência, oráculos da angústia, armas do caráter, sinetes de autopunição, disfarces da perversão. A histeria é decifrada como hieróglifos, os sonhos também, e tudo que parece hermético pode ser esclarecido por aquele que sabe escutar, interromper, pontuar, responder, ler. O que está emaranhado, gritante ou obscuro, a exegese resolve diz Lacan. Os equívocos podem ser dissolvidos, os artifícios absolvidos pela “libertação do sentido aprisionado”. Resolver, dissolver, absolver: trata-se então no decorrer do tratamento de colocar em liberdade. Evidentemente, se eu não amar minha própria liberdade também não amarei a do outro. Ele vai sentir isso, vai me querer mal, vai me enganar, vai fingir, se eternizar, sem tomar a porta do seu destino que, no entanto, lhe está amplamente aberta. Lacan insiste: a análise, na sua raiz é “revelação do palimpsesto, palavra dada do mistério, perdão da palavra”.

Dá para entender que na época (o ano da morte de Stalin) seu sermão inflamado tenha caído no vazio. Cinquenta anos para entender não é tanto assim. Já se viu isso com Hegel, Nietzsche ou Freud, se verá isso com Heidegger (do qual Lacan chega a elogiar a “significância soberana”).

Periodicamente, alguém tem que se sacrificar, sabendo dos riscos, para retomar as coisas com mais altura. Quanto tempo ainda para que A caminho da linguagem, de Heidegger seja verdadeiramente lido? Mas o que é lido de verdade? A Bíblia, Homero, Parmênides, Heráclito, Empédocles, Platão, Aristóteles, Shakespeare, Sade, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé, Joyce? De verdade? Têm certeza?

Lacan era apaixonante, é isso que quero dizer. É uma pena seus seminários, em Paris, não terem sido filmados: seu modo de fazer corpo com o que dizia era fabuloso. A voz, os pigarros, as voltas, as digressões, os sarcasmos, as exortações, as trepidações, os suspiros, tudo era musicalmente interessante. Um teatro maiúsculo. A vida é um teatro. Os antigos do “seminário” sabem o prazer que era ir ouvir o improvável, o surpreendente, o insólito, o inquietante, o derrapante, o assombroso Lacan. O escrito não o revela nas mesmas proporções: há um embaraço específico de Lacan em relação à escrita, uma preciosidade, um rebuscamento, um patoá às vezes inútil. Sua fala é familiar e impactante, sua escrita, enodada, engomada. Cada um que o traduza, e tudo se torna claro. Tanto mais que as fulgurâncias não são raras: “O que se realiza em minha história (…) é o futuro anterior do que eu teria sido com relação ao que estou me tornando.” É isso mesmo, é exatamente isso.

Há uma poética de Lacan, como há uma poética de Freud, no sentido mais existencial do termo. Daí as projeções, a efervescência em torno dele, as lendas. Não é de espantar que muitos de seus “alunos” (como ele dizia) ou de seus ouvintes tenham de repente se reencontrado nas ruas em 1968. A Escola normal superior ainda não se refez do golpe, e o Panteão, ali perto, muito perdeu de sua inocência. Uma certa liberação verbal da época teve em Lacan seu agente secreto.

Eu quase consegui levá-lo à China, tentei, com um certo sucesso, fazê-lo passar de Gide a Joyce. Será que ele gostaria de ter-me posto no divã? Provavelmente. Contentei-me com uma homenagem feita em seu seminário Ainda: “Sollers é ilegível, como eu”. Achei que não era verdade, mas isso não tem nenhuma importância. De tempos em tempos, algumas de suas fórmulas atravessam o meu horizonte, o “falaser”, por exemplo, ou “Deus é inconsciente”, ou “A Mulher não existe”, ou “Não existe relação sexual”. Lembro-me dos jantares perto da casa dele, no restaurante La Calèche: jamais uma banalidade na conversa, nem um único clichê, o despertar. Lacan, ao que parece, podia ser odioso. Sempre o achei, apesar de às vezes exasperante, extraordinariamente simpático. De quantas pessoas, afinal, podemos nos perguntar: “Que será que ele vai dizer hoje?” A palavra, o espírito. Lacan nunca se contentava com nada, nunca estava satisfeito, queria incessantemente recomeçar tudo, e é por isso que gosto de rever a sua assinatura em meu exemplar da edição original dos Escritos: “Não estamos tão sozinhos, no final das contas.”

Philippe SollersLe Monde de 13 de abril de 2001.

Artigo publicado originalmente no Le Monde, por ocasião do aniversário de 100 anos de Lacan e também publicado no livro “Lacan Même”.


O texto está disponível em francês no site de Philippe Sollers, e foi traduzido para a Newsletter do IPLA por Alain Mouzat.

Link: https://www.pileface.com/sollers/spip.php?article260