Por Catherine Millot
O que interessava a Lacan na lógica eram suas falhas, seus impasses, seus paradoxos. Os mesmos que encontrava no amor
Sinto falta de Lacan. “Não é só você, mas isso não a faz menos só.” Quem hoje me diria uma frase assim, frase com a qual, um dia, ele acolheu o sentimento de exílio que eu lhe participava, ligado, pelo que posso lembrar, à aridez, por vezes, de ser mulher? Suas frases eram muitas vezes feitas dessas torções que as viravam do avesso e que, numa girada, nos faziam passar de uma de suas faces à outra e sair do enclausuramento em que acreditávamos estar. Elas tinham a arte de colocar em continuidade o dentro e o fora, como aqueles objetos topológicos refratários à imaginação que tinham nomes estrangeiros: fita de Moebius, garrafa de Klein, cross-cap, e de que fazia grande uso para nos desacostumar da mania de entender.
O mundo assim tornava-se como que alargado, mesmo quando ele clamava que estava falando com os muros num tom que alçava quase até a vociferação, e que não deixava de lembrar o de Artaud. Não eram muros quaisquer, mas justamente os do hospital psiquiátrico, uma noite em que falava do saber do psicanalista na capela do Sainte-Anne. Acrescentara que falar aos muros o fazia gozar, e que nós, seu auditório, gozávamos também, por osmose. Meu coração batia quando ouvia em sua voz um acento que passava da raiva surda ao riso de uma gaia ciência, e acho que foi nesse instante que se decidiu para mim alguma coisa que ainda dura. Poderia chamá-la de transferência? Ele continuou, naquela noite, falando da “carta de amuro”. Essa consonância do amor e do muro, ele a emprestara de um poeta esquecido que havia citado: entre o homem e a mulher há o amor, entre o homem e o amor há um mundo, entre o homem e o mundo há um muro. Não fazia muito tempo que os muros de Paris haviam-se coberto de inscrições, enquanto as barreiras antigas pareciam ter se desfeito em poeira.
O amor é aquilo que se produz quando se muda de discurso, ele dissera também. Naqueles anos, parecia que respirávamos mais livremente. Anos que possuem, para mim, para sempre, um nome: o ano do “Ou pior”, o ano do “Ainda”, o ano dos « Non-dupes-errent », e o do “Joyce e o Sinthoma”. Estranhamente, só hoje percebo que ele não parava, então, de falar do amor. Do amor e da lógica, título que deu a uma conferência que fez em Roma, e à qual eu assisti. A gravação foi perdida. Nada mais próprio a Lacan do que aliar termos aparentemente tão díspares, o páthos se via desarmado, a própria lógica se tornava erótica.
O que de fato o interessava na lógica eram suas falhas: seus impasses, seus intransponíveis paradoxos, o ponto onde se revelava sua incompletude, sua inconsistência. Em suma, os redemoinhos onde os próprios lógicos se perdem. São esses mesmos paradoxos que ele encontrava no amor, quando este se torna sério e leva o rigor, como nos místicos, até o ponto em que não se pode dizer mais nada sem se contradizer e em que perda e salvação se equivalem. É nesse ponto que tocávamos, dizia Lacan, “o amor tal como ele deveria ser se ele tivesse o mínimo sentido”. Esses pontos formavam um ralo por onde evacuava-se o sentido. Por esses buracos também sumia a esperança de estabelecer qualquer relação entre homens e mulheres.
Lacan nos convidava a dela abrir mão para reinventar os jogos do amor, ou seja, talvez uma outra lógica que partisse do impossível. A lógica de Lacan nos libertava da compreensão, e da obsessão de encontrar um remédio a tudo. O irremediável tem suas virtudes, imediatamente apaziguadoras. Se me reporto à época presente, parece-me que a caracteriza o tédio com que nos tiranizam os eternos “problemas” que reclamam suas “soluções”. Sufocamos sob as soluções, e sob aquilo que supõem de incurável boa vontade (haveria outra definição para o “politicamente correto”?), como sob a mangueira de incêndio dos bombeiros da sociedade. Na época de Lacan, nos dávamos o direito de pensar sem procurar tapar os buracos do universo com a barra de nossa camisola de dormir, segundo a definição de filosofia dada por um humorista vienense. A época, de fato, era mais teórica do que filósofa: ela amava os buracos, e a lógica também. E o pensamento não se acreditava obrigado a se reduzir, em conformidade com as mídias, à dimensão da propaganda de fraldas, propondo uma solução para os problemas de vazamento. O espaço que se abrira, hoje voltou a se fechar. Provavelmente Abelardo tinha razão quando dizia que o lógico é “odioso ao mundo”. O gosto pela teoria não excluía o gosto pela experiência. A experiência psicanalítica, como Lacan a chamava, não deixava de fazer eco à experiência interior de Bataille.
Nós nos lançávamos de corpo e alma, apostando tudo para ver até onde aquilo iria, até que impasse ou imprevisível abertura. Estávamos então longe da psicoterapia. Essa aposta era a transferência, amor não tão comum assim, já que nos conduzia sem rodeios a nos tornar parceiros do Outro, desse Outro cujas falhas eram o objeto da lógica lacaniana. Nessas paragens, acontecia de encontrarmos o que Lacan chamava de o verdadeiro amor, que nasce dos signos daquilo que, em cada um, marca os rastros de seu exílio.
Catherine Millot é psicanalista e escritora. Seu livro mais recente: La vie avec Lacan – fevereiro 2016, Edições Gallimard.
Texto publicado no jornal Le Monde, em 13/4/2001
Tradução Márcia Aguiar
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