Dorothee Rüdiger
O grande Pai, o dono do poder e da verdade, tornou-se uma figura patética.
É esse o fio condutor que perpassa “Os sete de Chicago”, filme lançado nesse final de 2020. Dirigido por Aaron Sorkin e com um elenco respeitável (dentre outros Sacha Baron Cohen e Eddie Redmayne), o filme leva os espectadores ao ano de 1968, ano depois do qual o mundo não seria mais o mesmo. Nas barricadas, de Paris a Tóquio, estava nascendo a nova era que Jacques Lacan captou em seu seminário XVII, quando dedica uma série de aulas à psicanálise para além do Complexo de Édipo.
O filme nos leva à época, na qual os Estados Unidos resolveram redobrar o contingente de soldados a serem enviados para lutar na Guerra do Vietnam que estava se prolongando. Jovens a partir de 18 anos e que, nos Estados Unidos, não tinham a idade mínima para beber cerveja, eram sorteados pela televisão para lutar e morrer na guerra longe de casa . A decisão do Estado americano causou revolta por toda parte, nos Estados Unidos e no mundo. “O mundo inteiro está de olho!” tornou-se palavra de ordem também em Chicago, cidade que viveu um verdadeiro estado de sítio durante a convenção do Partido Democrata daquele ano. Os protestos acabaram em pancadarias. As pancadarias resultaram na prisão dos líderes dos movimentos pacifistas.
À primeira vista, o filme é mais uma daquelas obras da sétima arte que se passa numa sala de audiência do júri nos Estados Unidos. Mas, apesar disso e apesar de narrar uma história da vida real, guarda o suspense do começo ao fim. Os sete réus que, na verdade, são oito, contando com um réu que não se sabe ao certo como foi parar nas barras desse tribunal, representam diversos movimentos da época: hippies “paz e amor”, cujo protesto incluía um festival bem ao estilo “sexo, drogas e rock´n roll”, estudantes universitários, pacifistas bem comportados e um líder do partido dos Black Panthers, o oitavo réu.
Esse “mix” pós-moderno de personagens, cabeças, interesses e estilos diferentes enfrenta um júri presidido por um magistrado togado, ícone da sociedade na qual mandam as figuras paternas. Essa sociedade, nesse momento, estava por sucumbir. Só que não se sabia disso. O promotor de justiça era um jovem em início de carreira ao qual cabia representar o Estado nesse processo. Estava ciente de que na sala do júri as cartas estavam marcadas. Sabia de seu teor político. Seu estilo “engravatado” contrasta com o do advogado dos réus, homem tão astuto quanto mal vestido. Who cares? Digno de mencionar é também o público. A “galera” de cada um dos réus forma um composé pós-moderno de personagens e estilos diversos denotando a presença de uma sociedade, já naquela época, pluralista.
Se Lacan mandou lembranças? Como saber?
De certo, o filme nos aproxima com maestria de algumas teses muitas vezes mal compreendidas de Jacques Lacan. Quem se deixa encantar pelo estilo leve e irônico, com o qual principalmente dois dos réus enfrentam o juiz, chega a compreender porque Lacan diz que “o pai tornou-se um mito”, ou ainda, que “o Outro não existe”. God is dead. Comparecem às audiências de calças rasgadas, pulseiras de missangas e bandanas no cabelo. Fazem gracinhas o tempo todo ridicularizando, dessa maneira, o espetáculo das audiências e, principalmente, o juiz que com seu martelo tenta, em vão, chamar à ordem. O juiz “pai” (um dos réus o chama de “Daddy”) é uma farsa, seu martelo é apenas um martelo. Os personagens denunciam o “mito” que, em dado momento, torna-se cruel, quando ordena que o líder dos Black Panthers seja calado de maneira violenta.
Lacan manda lembranças. Tal como o “grande Freudiano”, o advogado dos sete réus denuncia com habilidade que a verdade é mentirosa. É retórica, é versão. Pode ser torcida e retorcida. Além disso, um dos réus faz a amarga experiência de que, como diria Lacan, é responsável pelo que disse, mesmo se a intenção era das melhores.
Durante o longo processo irá acontecer algo que vai deixar os “Sete de Chicago” na história da humanidade. Sem que alguém prestasse atenção, um dos acusados, uma figura discreta, observadora, faz anotações. Essas anotações vão deixar o tribunal em polvorosa esvaziando o discurso da autoridade judicial, o “discurso do mestre”. Quando fica ciente das anotações feitas ao longo do processo, o juízo tem que se deparar com o furo, com o Real, com a morte. Insistindo na ordem nesse momento, o magistrado torna-se palhaço. Nada mais ridículo do que diante do encontro com o Real chamar à ordem batendo o martelo.
A cena representa o nascimento de uma nova era, de um “novo amor”. Inaugura uma nova ética que, nas palavras de Jorge Forbes, é baseada na invenção e na responsabilidade. Sabemos 50 e tantos anos depois da história narrada no filme, que essa ética é necessária para se viver em tempos tão líquidos quanto os nossos.