Por Dorothee Rüdiger
Esse texto foi apresentado nesta semana, 23/8/16, por solicitação de Jorge Forbes, em seu curso semanal, que trabalha atualmente as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.
Até onde pode chegar a ambição dos pais de terem filhos que fazem sucesso na vida? Até que ponto a sociedade pode permitir a manipulação genética, quando garante que todos possam ser “bem nascidos”? Atuando em seu Caso contra a perfeição, título original do livro intitulado em português Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética, Michael Sandel traz para o leitor, nos capítulos “Filhos projetados, pais projetistas” e “A nova e a velha eugenias”, reflexões éticas sobre pais e governos ambiciosos que podem se servir da biotecnologia para gerarem filhos perfeitos e cidadãos do bem. Fiel a seu estilo dialético, Sandel continua o debate inaugurado nos primeiros capítulos sobre a ética do melhoramento e os atletas biônicos que a biotecnologia pode gerar. Seguindo sua técnica de argumentação, apresentamos a seguir resumidamente as teses, antíteses e sínteses do autor sobre a biotecnologia, a educação, a eugenia e a política para depois tecermos comentários.
Tese: os hiperpais
Os hiperpais, pais ambiciosos cujos filhos devem ser produtos de seus planos e de suas vontades, encontram-se em toda parte. Eles exercem sua maestria e seu controle sobre seus filhos ou, ao menos, tentam fazer isso. Com as possibilidades abertas pela manipulação genética, esses pais poderiam potencializar sua ambição gerando superfilhos com corpos, mentes e capacidades psíquicas perfeitas: memória, temperamento, paciência, empatia, senso de humor e otimismo seriam inseridos nos genes dessas crianças equipadas, assim, para vencerem na vida. Se hoje esses pais já estão ensandecidos para dar o melhor ensino para seus filhos, disputando vagas nas melhores universidade dos Estados Unidos desde o nascimento dos rebentos, treinando-os desde o jardim da infância para o vestibular e pagando somas polpudas para coaching infantil para garantir a esses filhos um lugar ao sol numa sociedade competitiva, o que não farão com as possibilidades da manipulação genética? Mas, será que não é legítimo os pais agirem dessa maneira, uma vez que têm a obrigação legal de proporcionarem educação a seus filhos?
Antítese: pais abertos para o inesperado
Há pais que não entram na corrida ambiciosa para fazer dos filhos winners sociais. Esses pais são abertos para o inesperado. Encaram a relação com os filhos como uma dádiva, uma bênção da natureza. Dedicam a sua prole um amor incondicional. Deixam a natureza escolher por acaso as qualidades de seus filhos. Esses pais também vão querer dar a melhor educação para seus filhos. No entanto não exercem a maestria deixando-os se desenvolverem naturalmente. São pais críticos a uma sociedade que exige desempenho a qualquer custo, pais que deixam seus filhos desenvolverem com liberdade seus talentos.
Síntese: a tomada de posição de Michael Sandel
Michael Sandel toma claramente partido contra os hiperpais e as possibilidades de bioengenharia, quando descreve até onde chega sua maestria. Os filhos de hiperpais são desde cedo destinados a seguirem padrões rígidos e questionáveis. Já se aplica testes de inteligência periódicos para medirem o sucesso de métodos educacionais ambiciosos desde os 4 anos de idade: “simuladinhos” desde cedo. O lado B da medalha do sucesso pelo aumento da capacidade intelectual é a presença de síndromes tais como o déficit de atenção e a hiperatividade que ocasionam a medicação de toda uma geração de crianças com Ritalina e outras drogas para combater os efeitos colaterais da maestria paternal. Mais do que isso, Sandel questiona o projeto de um mundo de acordo com o qual as crianças devem se encaixar a um padrão social que exige o melhoramento a qualquer custo. A manipulação genética não é “mais invasiva e mais sinistra” que essas práticas educacionais. Ela reforça a ambição e o excesso de maestria já presente nas atuais relações entre pais e filhos.
Se a manipulação genética já abriga o perigo da maestria e da dominação dos pais sobre os filhos, o que dizer das possibilidades da nova eugenia?
Tese: a velha eugenia e o totalitarismo político
É de Francis Galton, cunhado de Charles Darwin, a ideia de “produzir uma raça altamente talentosa de seres emanados por meio de casamentos criteriosos durante diversas gerações consecutivas”. Essa ideia encontrou campo fértil em solo norte-americano incentivando o biólogo Charles Davinport a criar, no começo do século XX , o Eugenic Records Office em Cold Spring Harbor, Long Island. Suas pesquisas destinadas a evitar a reprodução genética de débeis mentais, bandidos, miseráveis e loucos, tiveram ressonância entre empresários e políticos da época que debatiam e até implementaram políticas públicas que deveriam criar um “bom cidadão do tipo correto”, como se pronunciou Theodore Roosevelt. Famílias qualificadas participavam de competições em feiras genéticas, onde também eram premiadas as vacas e as galinhas campeãs de seleção genética, enquanto universidades ofereciam cursos de eugenia aos jovens. O Estado da Indiana promulgou, em 1907, uma lei que levou à esterilização forçada de 60 mil norte-americanos por razões eugênicas, prática considerada legal em 1927 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Se não fosse o choque de realidade dado pela descoberta dos campos de concentração nazistas e o assassinato em massa das pessoas consideradas geneticamente inferiores, a eugenia na mão do Estado como instrumento de políticas públicas iria longe também nos Estados Unidos e alhures.
Antítese: a nova eugenia e o mercado
Haveria uma eugenia “bonita”, se ela fosse baseada não em políticas públicas dos Estados, mas na livre escolha dos pais? Sandel cita o exemplo em que um Estado tentou praticar a eugenia por incentivos financeiros. A Singapura dava, em 1980, incentivos financeiros para mulheres universitárias terem mais filhos, ao passo que pagava para mulheres pobres e com pouca capacidade intelectual um incentivo para a esterilização. Há, hoje, clínicas especializadas que oferecem óvulos e espermatozoides por catálogo para pais interessados em gerarem filhos perfeitos por inseminação artificial. No campo do que Sandel chama de “consumismo eugênico” há de tudo e mais um pouco para os pais escolherem filhos bonitos, fortes, inteligentes e com temperamento dócil em troca de altas somas de dinheiro.
Síntese: contra o consumismo eugênico
Michael Sandel se volta contra o comércio de espermas e óvulos, uma vez que há uma confusão de interesses entre querer projetar crianças segundo um padrão de eugenia particular e os ditames do mercado que fazem dessas crianças um de seus produtos. O que há de mal na escolha de traços eugênicos clean? Para muitos pensadores contemporâneos do campo do direito e da filosofia, tais como Ronald Dworkin, Robert Nozick e John Rawls, desde que os pobres tenham acesso a esses serviços, não há nada de mal. O problema está na garantia da igualdade de condições para que todos os pais possam melhorar a qualidade genética de seus filhos. Investimentos no melhoramento dos talentos sempre houve. Desde que a eugenia seja assunto privado dos pais em igualdade de condições sociais, a ninguém pode ser vedado o exercício do direito de escolher um futuro melhor para seu filho, seja qual for o meio. Sandel não se convence com esses argumentos. Embora não esteja de acordo com Jürgen Habermas, quando este argumenta que a eugenia tolhe a autonomia da criança porque ela se torna um projeto paternal a cumprir para toda vida, dizendo que filhos perfeitos também podem se esquivar da ambição paterna, Sandel concorda com Habermas, quando diz que a liberdade pressupõe algo que escapa do controle da civilização. A natureza, em outras palavras, com suas contingências e seu aspecto incontrolável garante a liberdade. Como a eugenia quer banir a contingência, ela favorece projetos autoritários, mesmo se não for destinada a políticas públicas nazifascistas.
E a posição da psicanálise?
Aceitar os avanços da biotecnologia ou não? Eis a questão. Para concluir vale citar Sigmund Freud, autor do ensaio Mal-estar na cultura, escrito em 1930.
Para Sigmund Freud não há uma anteposição entre a civilização e a natureza e não há a possibilidade de realizar perfeição, tal como aparece no discurso de Sandel Contra a perfeição. A civilização é o habitat do ser humano, uma vez que precisa dela para sobreviver. Não há como voltar à natureza e, portanto, não há natureza humana, porque o ser humano é atravessado pela civilização. Limitados pelas leis da civilização e sempre esperneando contra elas temos o desejo que nos movimenta como um motor do inconsciente. Esse desejo atua num mundo em que inventamos a tecnologia para potencializar nossas capacidades naturais. “Com todos os instrumentos o ser humano aperfeiçoa seus órgãos”, diz Freud. Cita os motores para potencializarem os músculos, os óculos, para deixarem enxergar melhor, o gramofone e o telefone para reproduzirem melhor a voz e a levarem para mais longe, a casa para substituir o ventre materno. Somos indefesos feito bebês sem essas benesses, mas temos todo um trabalho para conviver com essas “próteses”. “O ser humano”, diz Freud, “tornou-se uma espécie de Deus das próteses, fantástico, quando faz uso de todos esses órgãos auxiliares, mas estes não lhe são naturais e de vez em quando lhe perturbam bastante. …. Tempos futuros trarão novos e inimagináveis progressos nesse campo da cultura que irão potencializar essa semelhança com os deuses. No entanto, no interesse de nossa pesquisa não podemos esquecer com tudo isso que o homem contemporâneo não é feliz com essa sua semelhança com os deuses.”
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo
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