Por Gisele Vitória
A capa amarela, coxinha. A capa vermelha: pão com mortadela. Inverta os papéis e você descobrirá que a revista Planeta deste mês fez duas capas, frente e verso, com dois blocos invertidos na edição especial que retrata os lados da intolerância em um país dividido
Narciso acha feio o que não é espelho. É fácil chamar de mau gosto quando encaro alguém frente a frente, e não vejo o meu rosto. Caetano Veloso já sabia disso em 1978, quando compôs Sampa. É natural repelir algo ou alguém com quem você não se identifica. A história da civilização contabiliza muitos episódios dessa ordem. No Brasil das manifestações e das polarizações, cresce a intolerância mútua a quem tem posições opostas. O Brasil está tão dividido que parece até um país de duas cabeças. Duas cabeças que não se toleram e não se reconhecem. Discussões apaixonadas põem fim a amizades. Famílias andam brigando. Surge uma forma de ódio e irritação na direção de quem pensa diferente ou torce para algum lado. Agressões verbais culminam com bloqueio de amigos nas redes sociais, tal como um inimigo a ser deletado ou eliminado. No clima de hostilidade mútua, parece ser imprescindível ter que escolher um lado. Ou você é coxinha ou você é mortadela? O mero uso do vermelho é malvisto. A camiseta da seleção brasileira ganhou outra conotação. A simples liberdade de análise dos que querem olhar os fatos acima do muro – ou em cima do muro?, dirão – é vista com maus olhos. Com o que estamos lidando?
Os termômetros marcam temperaturas elevadas. Na revista Planeta, uma publicação de 44 anos voltada para os assuntos de meio ambiente, sustentabilidade, equilíbrio, espiritualidade e bem-estar, o normal seria falarmos do aquecimento global, mas o clima quente é de outra ordem. Acontecimentos políticos e sociais afetam a sua vida. Mexem no seu equilíbrio. As mobilizações sociais são saudáveis para o espírito democrático e cívico, mas trazem também outros sintomas. A intolerância é um deles. Para entrar nesta pauta do dia, a Planeta deste mês de maio aborda a intolerância e ódio sob o ângulo do nosso planeta interior. Marcos Marques, diretor de núcleo de arte, propôs a feliz ideia dessa dupla capa invertida: de um lado, amarela-coxinha, do outro, vermelha-pão com mortadela. O resumo parece simples. Mas levou um tempo até tudo fazer sentido. Muita conversa e discussão. A ideia coincidia diretamente com a nossa intenção de chamar para esta reflexão sobre os níveis de intolerância que acometem as pessoas neste momento delicado do País.
A brincadeira de inverter a revista tinha um por quê. Pode dar algum trabalho ao leitor, mas o objetivo é reforçar a ideia de que você pode ver as coisas por um outro lado, ou invertendo situações. As posições são tão importantes quanto as mobilizações. Mas até onde isso deve afetar o seu estado de espírito e sua relação com seus amigos e familiares, e mesmo com a figura do próximo? É possível aceitar o diferente? Quem não se lembra da frase célebre de Voltaire: “Posso não concordar com o que você diz, mas defendo até a morte seu direito de dizê-lo.”
Na outra ponta da revista, não há fim. Mas, um outro começo. Um outro editorial. Duas entrevistas. De um lado, o psicanalista Jorge Forbes diz: “Há uma guerra civil verbal”. Do outro, o filósofo Leandro Karnal completa: “Diversidade é vida”. Uma sequência de matérias se encontra na página dupla central, onde é preciso inverter a revista para ler o outro lado. A edição passeia pelos caminhos da intolerância e também por seus antídotos. Apostamos nesse exercício de olhar o outro lado. Uma vacina anti-intolerância é tentar ser mais leve. No seu livro “O cultivo do ódio – A experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud ”, de 1993, o psicanalista Peter Gay constata que o humor é um exercício e um controle da agressão. “Como a sociedade treina seus filhos para a “harmonia social”, os chistes e a piada representam uma das saídas para os desejos reprimidos”, escreveu o psicanalista – falecido em 2015-, lembrando da expressão “rir para não chorar”. Sabe-se que há um nível de intolerância incontrolável, como a que matou os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo, mas Peter Gay apostou: o humor pode diminuir o tamanho das catástrofes.
Foi com sorriso no rosto e muito bom humor que Barack Obama quebrou o gelo em Cuba. A esperança por meio do diálogo apontou um caminho em Havana, com a visita do presidente americano, depois de 60 anos de guerra fria. Assim como o rock dos Rolling Stones, num show inesquecível e histórico na ilha dos irmãos Castro, onde agora os cubanos começam a ter mais liberdade. Estendemos a reflexão para outros lados do mundo. A chanceler alemã Angela Merkel perdeu pontos em popularidade por buscar na solidariedade um caminho para acolher quantos fossem os refugiados sírios que chegassem à Europa. A intolerância aos imigrantes traz marcas difíceis para a Europa. Em Roma, o Papa Francisco pediu o fim da intolerância aos divorciados e às relações entre pessoas do mesmo sexo. Refletir é um jeito de fazer tocar um alerta interior. Como lidar com a intolerância? Inverta os papéis (ao menos os da revista Planeta) e olhe por outro lado.
Gisele Vitória é jornalista
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