Por Tatiana do Prado Valladares
Esse texto foi apresentado em 18 de outubro de 2016, por solicitação de Jorge Forbes, em seu curso semanal, que trabalha atualmente as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
Cazuza, “O tempo não pára”
É possível prever o futuro? Como se estabelecem os parâmetros que prevalecerão perante outros? Quais desafios serão enfrentados, sob o ponto de vista da relação entre a Psicanálise e o Direito, num ambiente que se mostra cada vez mais transumano, autorregulado, horizontal e tecnológico? Haverá um retorno ao passado ou se desenvolverá uma nova e singular comunicação entre essas entidades?
Inicialmente, cabe destacar que prever o futuro é considerar que uma situação presente possa ser representada por uma vetorial constante no tempo e espaço, permitindo que as circunstâncias atuais possam se manter estáveis o suficiente para que determinada consequência seja inevitável. Ou seja, é uma vã e utópica tentativa. O que se pode e deve fazer é avaliar as situações atuais e delas então elaborar possíveis hipóteses ou efeitos, de longo, médio e curto prazo, para que, pelo menos, se busque observar quais deles se configurem mais prováveis de ocorrer e em que condições.
Todavia, previsões do futuro não faltam. E se observam infinitas hipóteses. Há quem afirme, por exemplo, que o transumanismo trará de volta a aplicação do primitivo Direito Consuetudinário, ou Direito Cultural, na forma de autorregulação. Há quem diga, porém, que esta situação já se faz presente, em especial se levarmos em conta a experiência internacional das relações jurídicas advindas da internet. Há quem discorde totalmente dessas premissas ao considerar o direito incompatível com a estrutura horizontal das relações humanas do século XXI. Há, ainda, por fim, quem considere que a prevalência das relações autorreguladas significará o fim do Direito como o conhecemos.
Longe de tentar responder tais questões, tem-se por objetivo desse trabalho propor argumentos para o aprofundamento dessa discussão que, como se pode observar, não se esgotará em breve.
Hipótese 1: A autorregulação consuetudinária
Ao tratar de Direito Consuetudinário, deve-se resgatar a sua origem e suas características principais a fim de que seja possível fazer um paralelo entre o passado, o presente e o potencial futuro. Ao mesmo tempo, deve-se compreender qual sentido de autorregulação deve ser aplicado nesta hipótese para que os conceitos de Direito Consuetudinário e autorregulação possam ser aproximados enquanto conceitos similares.
Entende-se por Direito Consuetudinário, em breves linhas, as normas, regras, leis e demais obrigações de fazer ou de não fazer provenientes da cultura de um povo ou civilização. Na antiguidade, era praticamente a única forma jurídica que existia entre os povos primitivos, sendo as leis transmitidas de uma geração à outra. As pessoas, portanto, desde sempre, sabiam o que era permitido e o que era proibido naquela sociedade, bem como as eventuais punições nos casos de descumprimento daquelas regras.
Freud, em “Totem e Tabu”, descreve em detalhes alguns exemplos de ordenamento consuetudinário. O respeito ao totem, as regras que regulavam a vida dos clãs, as proibições incestuosas e seus tabus permanentes e temporários são situações que correspondem à aplicação clássica do Direito Cultural. Ainda, quando Freud relata as punições de morte e ostracismo no texto, está descrevendo o que seria equivalente a um direito penal da época.
É importante destacar que o Direito Consuetudinário possui duas características que o diferenciam dos outros tipos de ordenamento jurídico: o desconhecimento da identidade do legislador e a prevalência da moral na cominação das penas. As leis primitivas, assim como as lendas de um povo, tinham origem desconhecida e eram passadas de pai para filho como dogmas a serem seguidos inquestionavelmente. De tal sorte que, com o passar do tempo, nem se sabia mais ao certo a razão original da existência de algumas dessas normas e regulamentos, mas elas ainda assim eram cumpridas à risca por todos os sujeitos inseridos naquela cultura.
Além disso, se observa o caráter moralista das punições determinadas nos casos de descumprimento de determinada regra de conduta. Quanto mais distante dos denominados “bons costumes” da sociedade, maior a punição à sua inobservância. Numa sociedade canibal, por exemplo, poder-se-ia considerar uma afronta grave matar o próprio filho para comer, mas não ser considerado tão hediondo exterminar-se a família vizinha. Como se percebe, não se trata da conduta em si, mas sim da sua consequência moral para a sociedade.
Uma vez esclarecidos alguns pontos relativos àquilo denominado Direito Consuetudinário, cumpre estabelecer como aproximar tal conceito aos diversos significados atribuídos à expressão “autorregulação”. Portanto, a fim de aproximação de conceitos, deve-se estabelecer que autorregulação, nesta hipótese, estaria relacionada à capacidade humana de conhecer as obrigações e regras legais e fazer-se cumpri-las integralmente. Ou seja, a capacidade de controlar-se diante de um desejo proibido, de agir segundo o regulamento.
Aproximar os conceitos de Direito Consuetudinário ao de autorregulação enquanto hipótese provável de análise social do presente e do transumanismo de Terradois seria, portanto, compreender que ambas, enquanto sinônimos, deveriam ser obrigatoriamente referenciadas na estrutura vertical das relações, no simbólico. Seria, portanto, um retorno ao passado.
Estaria, então, Cazuza ressignificando o Eterno Retorno de Nietzsche ao compor “O tempo não pára”? O futuro repetirá o passado? Estaria o passado retornando e reiniciando uma nova civilização humana?
Por outro lado…
Hipótese 2: A anarquia autorreguladora
Partindo-se do princípio de que reafirma-se tudo acima descrito, exceto o conceito para o termo “autorregulação”, temos a segunda hipótese a ser considerada – a autorregulação enquanto definição contrária à da legislação cultural. Uma vez que também pode-se definir autorregulação sob o ponto de vista da capacidade individual de auto estabelecer-se regras e normas e fazer-se cumpri-las independentemente de haver ou não uma estrutura jurídica erga omnes – para todos – estaríamos, portanto, indo de encontro ao Direito Consuetudinário.
Enquanto o Direito Cultural possui leis que devem ser observadas por todos, onde não importa concordar ou não com os regulamentos uma vez que eles devem ser cumpridos irrestritamente, a autorregulação, por sua vez, nesta hipótese, partiria da premissa de que sequer haveria uma ordem determinada à civilização pois cada individuo, de per se, seria autônomo para agir e tomar decisões de acordo com a sua subjetividade.
Nesse caso, caberia tão somente ao indivíduo e à sua singularidade determinar quais seriam seus deveres e direitos perante a sociedade, estabelecendo, portanto, uma estrutura anárquica, sem Estados ou parâmetros institucionais. Ora, ao desconsiderar qualquer outro ordenamento que não seja aquele estabelecido individualmente, não se pode considerar a existência de uma representação jurídica-institucional, seja a que título for. É, portanto, a anarquia em essência.
Porém, antes de se desconsiderar essa hipótese enquanto possível ou provável para o estabelecimento do transumanismo em Terradois, deve-se destacar que, em certa medida, pode-se identificar um ambiente em que a autorregulação já se faz plenamente presente entre nós: na chamada deepweb.
Entende-se por deepweb, ou deepnet, a parte mais profunda da internet, onde existem sites cujo conteúdo está totalmente criptografado, que não podem ser localizados por nenhuma ferramenta de busca e que somente podem ser acessados por aqueles que conhecem seus códigos secretos. Foi criada com o intuito colaborativo de se compartilhar informações entre os desenvolvedores de conteúdo online, livres de patentes ou quaisquer outros tipos de limitações territoriais, jurídicas ou institucionais de programação.
Segundo o Wikipédia, estima-se que haja quase o triplo de sites na deepweb que na internet como conhecemos, ou surface-web, e que se compartilha bilhões de terabites por segundo em todo o planeta. A deepweb é, portanto, um exemplo claro e atual dessa autorregulação, em plena atividade.
Observa-se, todavia, que esse modelo de autorregulação se baseia tão somente na crença do desenvolvimento de pessoas conscientes, empáticas e capazes de promover o bem-estar social. Acredita-se, para tanto, que a natureza do homem é boa, assim como pensava Rousseau, e que basta o homem conscientizar-se para ser capaz de se autorregular e desenvolver-se, como desejava a Gestalt-terapia.
E, como toda crença, também esta se funda em nada mais que esperança torpe e ideologicamente falha. Como se pode imaginar, na deepweb também se encontram as piores mentes humanas, voltadas à violência, totalitarismos e arbitrariedades de todo tipo, que se aproveitam desse espaço anárquico para agir livremente. As principais redes de comunicação da al-Qaeda, Estado Islâmico, grupos neonazistas, mercenários, traficantes internacionais de drogas e armas, dentre outros, estão vinculadas aos meandros indefectíveis da deepweb.
E então? O que irá acontecer? A estrutura horizontal prevalecerá perante a estrutura vertical? Em que medida? Será o fim do sistema jurídico como conhecemos?
Senão vejamos…
Hipótese 3: A horizontalidade do Direito
Se considerarmos que o transumanismo caminha para a estruturação horizontal das relações e para a autorregulação dos sujeitos conforme a definição da hipótese 2 acima, é possível inferir que, consequentemente, estamos nos afastando tanto da estrutura vertical quanto dos elementos que a representam, dentre eles, o Direito, a função paterna e o simbólico.
Será esse o caminho de Terradois? Um mundo onde cada pessoa responda a si mesma e não haja limites externos?
Não nos parece. Se voltarmos ao Direito Consuetudinário, pode-se observar que, logo após os recentemente evoluídos homo sapiens perceberem que eram fisicamente inferiores e constituíam presas fáceis de outros mamíferos carnívoros, não tardaram a se reunir em grupos a fim de se protegerem, e assim garantir a sobrevivência da espécie humana. E a primeira coisa que fizeram foi estabelecer regras de convivência para manutenção da paz e da ordem grupal. Isso se deu através de repetição de comportamentos e condicionamento, paulatinamente, ao longo dos séculos. Tudo isso antes mesmo de sequer ser desenvolvida a linguagem verbal.
Pode-se verificar, portanto, que o Direito, enquanto elemento estrutural de qualquer relação social, prescinde a toda e qualquer forma de regulação. Uma vez que é impossível retirar o homem da sociedade, é impossível que esse homem não domine pelo menos as regras determinadas pela cultura de onde ele esteja inserido, a menos que sofra de rebaixamento intelectual ou outra patologia mental.
Assim, se pode pensar em estabelecer um ambiente de autorregulação que não contradiga as normas sociais já existentes? É possível pensar numa relação horizontal inserida num ordenamento vertical?
Entende-se que sim, é possível.
Aliás, entende-se que outro modo de se imaginar essa realidade é irreal. É importante observar que, historicamente, onde há o avanço no desenvolvimento individual há também uma redução dos limites normativos impostos pelas leis. Em outras palavras, quanto mais as pessoas demonstram serem capazes de se autorregular, mais liberdade de atuação elas obtèm e menor a participação do Estado na vida dos sujeitos.
A evolução histórica do ordenamento jurídico de diversos países pode constatar essa afirmação. Excetua-se a isso, claro, as culturas totalitárias e ditatoriais. Isso significa que, ao invés de serem opostos absolutos, a autorregulação e o Direito podem conviver numa estrutura em que um se expanda enquanto o outro se contraia ou vice-versa, adaptando-se à realidade de cada cultura e à singularidade de cada sujeito.
Assim, pode-se concluir ser possível que a junção de uma estrutura vertical com outra horizontal resulte numa vetorial diagonal em direção ao infinito. Mas, como dissemos inicialmente, essa previsão requer a existência de “uma vetorial constante no tempo e espaço, permitindo que as circunstâncias atuais possam se manter estáveis o suficiente para que determinada consequência seja inevitável. Ou seja, é uma vã e utópica”…
Será? …
Tatiana do Prado Valladares é advogada e psicanalista.
Publicado em O Mundo visto pela Psicanálise, ed. 170 – 28 de outubro de 2016
[…] Esse texto foi apresentado em 18 de outubro de 2016, por solicitação de Jorge Forbes, em seu curs… […]