Por Leda Guerra
O gesto analítico vai além das palavras, daquilo que não se explica para tocar o ponto de gozo do paciente.
Chegou-me ao consultório uma jovem demandando análise para livrar-se do uso de drogas. Seu vício já vinha se arrastando por muito tempo, uma vez que ela tinha iniciado uma incursão pelas drogas (maconha, LSD, craque, álcool, cocaína) desde os seus 15 anos de idade.
Nas entrevistas preliminares, disse-me: uso drogas, mas nunca roubei. E em tom de bravata interior, arrematou: Eu sustento meu vício.
Perguntei quem sustentava seus tratamentos. Ela disse que os pais sempre se preocuparam e a levaram a psicanalistas e psicólogos e eram eles, os pais, quem efetuavam o pagamento a esses profissionais. Falou com certo desdém dos tratamentos até então empreendidos. Percebi que nunca esteve implicada com suas questões, embora estivesse consciente do sofrimento causado pelo vício, das ruas tortuosas pelas quais vinha caminhando e de um certo desgosto com a própria vida.
Perguntei-lhe quanto gastava com a cocaína e ela me respondeu: 100 reais por semana, o que para mim é muito pesado. Ao final da primeira sessão, ela quis saber qual o preço que deveria pagar. Respondi-lhe que trataríamos disso no próximo encontro.
Na sessão seguinte, já não falava das drogas, mas do sofrimento que marca sua existência. Situei o uso de entorpecentes enquanto um sintoma e não como um problema em si mesmo ou uma doença. Busquei, portanto, uma escuta diferenciada, que pudesse sair do universo previsível em que normalmente as pessoas se referem àqueles que usam drogas, geralmente com rótulos do tipo “drogaditos” “cheira pó” etc. Interessava-me ouvir o desejo que se mostrava subjacente as palavras que singularizam aquela jovem. Busquei escutar a radical diferença que marca sua história de vida. E ao escutar a queixa, expressão do sofrimento, tentei incidir de maneira a implicá-la naquilo que dessa queixa tinha a sua parcela de participação.
Numa outra sessão, ela já se mostrou ansiosa para saber o preço a pagar pelo tratamento. Informei-lhe o valor de cada sessão e ela disse que não poderia pagar o valor anunciado. Perguntei: quanto você se compromete a pagar? – 150 reais por sessão, ela me respondeu. Então eu lhe disse: Você vai me pagar 101 reais por cada sessão. Disse que seria ela, dessa feita, a assumir o pagamento do seu tratamento, não os seus pais.
Quando disse que deveria pagar um valor abaixo do que ela própria havia proposto, parecia não entender mais nada. Mexeu a cabeça, franziu os músculos da testa como a querer compreender. Repetiu, quase balbuciando: cento e um reais… E perguntou-me: por que 101 reais? Sorri. Ela continuou indagando: Por que esse 1 real a mais? Devolvi-lhe a questão: por que? Ela refletiu e falou: já sei, cem reais é o que gasto com a droga… E 1 real é o “a mais”? Sim, é o “a mais”? Confirmei.
Encerrei a sessão. E nas seguintes, ela me entregou uma nota de cem e a moeda que completava um real. Enquanto fazia o pagamento, riu e disse: acho que vou ter que fazer uma opção entre o vício e a análise. E serei eu a pagar por isso.
Essa foi a forma encontrada para que se implicasse inicialmente com seu tratamento e pudesse, a partir daí, implicar-se com a análise.
Em sua segunda clínica, o psicanalista francês Jaques Lacan já não dá mais ênfase ao simbólico, retira a interpretação que dá sentido e passa a operar com a palavra e o gesto de modo a gerar um curto-circuito com o propósito de tocar o corpo do analisando por meio do empréstimo de consequência. Assim, o analisando é levado a responsabilizar-se pelo seu desejo e pela invenção de si mesmo frente ao Real.
Para tanto, o analista utiliza-se do equívoco, da ironia, da surpresa, dentre outros bisturis da clínica. Segundo Jorge Forbes: “A palavra interpretação deve ser utilizada na primeira clínica, enquanto, na segunda clínica, falamos em ato do analista, apresentado na corporificação de seu gesto. A interpretação abre a novos sentidos; o gesto aponta o limite, o basta, o “tu és isto”.
O gesto analítico vai além das palavras, daquilo que não se explica para tocar o ponto de gozo do paciente.
Leda Guerra é psicanalista, historiadora e professora da Universidade Federal de Alagoas