Por Dorothee Rüdiger
Apesar de ter aprendido que a decadência da morte com suas marchas fúnebres faz parte da vida e não nos poupa nem durante o Carnaval, prefiro e quero a cadência do samba.
Quando, há décadas, cheguei com a cara e a coragem ao Rio de Janeiro, disposta a fazer do Brasil minha casa, era Carnaval. A recepção não poderia ser melhor. O Cristo Redentor estava me esperando de braços abertos e o coração do povo estava pulsando de alegria ao ritmo do samba das baterias no desfile das escolas campeãs. A “Gringa” da Floresta Negra estava desembarcando numa terra na qual, apesar da morte, onipresente como em qualquer lugar do planeta, sabe-se celebrar a vida.
Assim, de carnaval em carnaval, comemoro a escolha que fiz para viver numa terra distante da minha, em meio dos brasileiros que, apesar de encararem um dia-a-dia com muitas dificuldades, sabem o que é ter ginga. Não foi diferente neste ano, no qual dei minha modesta contribuição para que o carnaval de rua da capital paulista pudesse renascer. No entanto, sou cidadã do século XXI. Com as notícias chegando a tempo real do outro lado do globo terrestre, não pude ignorar que o som de uma marcha fúnebre estava atravessando nosso samba. Ameaças de guerra estão assustando a humanidade. Fazem lembrar os tempos de guerra fria que pareciam superados com a queda do Muro de Berlim.
Não há, na história, um túnel do tempo que nos leve de volta para o confronto entre Ocidente e Oriente. Dependemos por demais dos outros na compra e venda de bens, na ciência e tecnologia, nas redes de comunicação. E há algo que aflige a todos nesse mundo globalizado, algo que Jacques Lacan chamou de o Real. Não sabemos dizer exatamente em que direção caminha a humanidade. Somos, nas palavras de Jorge Forbes, desbussolados. O futuro não pertence a ninguém, a não ser a nós mesmos. E isso assusta. Gera o “estado de exceção”, do qual Giorgio Agamben trata em seu ensaio homônimo. Manifestações de rua que pipocam no mundo inteiro dão conta desse “mal-estar na civilização” contemporânea. Pode acabar em violência, autoritarismo, golpes de Estado, guerra. É uma possível resposta à insegurança sobre qual rumo tomar, a resposta do “salve-se quem puder”.
Mas, se essa marcha fúnebre vai dominar a cena, depende de nós. Isso porque entusiasmo, criatividade e vontade de viver, expressões da “pulsão de vida”, como diria Sigmund Freud, podem contribuir para que do impasse entre cidadãos e povos possam sair soluções que apontem para um futuro pacífico e próspero para toda humanidade.
Por que isso daria certo? Vale citar Caetano Veloso que, numa entrevista, respondeu à questão por que o Brasil daria certo?, com um sincero: “Porque quero.” Sim. Quero continuar sendo uma cidadã do mundo. Dispenso novos Muros de Berlim, fronteiras com campos minados, arames farpados, os pesadelos de minha juventude. Quero dividir com outros cidadãos do mundo desafios e alegrias. E, apesar de ter aprendido que a decadência da morte com suas marchas fúnebres faz parte da vida e não nos poupa nem durante o Carnaval, prefiro e quero a cadência do samba. Mais um ano de trabalho está à frente. O que o futuro reserva? Quem vai saber? Se quiser continuar cidadã do mundo, em parte, o futuro depende de mim. É tempo, portanto, de colocar a mão na massa, realizar, construir e não se esquecer de compor e tocar o samba da vida.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo