Por Gisele Vitória
NOTA: Esse texto foi comentado nesta semana, na terça-feira 13/9/16, no curso semanal de Jorge Forbes, como memória da aula anterior, em que lemos “Dez Aforismos pela Vida”, dando continuidade ao estudo do tema que trabalha atualmente – as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.
1. Quando começa a memória da nossa última aula?
Vem à mente a frase do poeta Paul Valéry, grafada em 1937 na entrada do Museu do Homem, no Trocadero, em Paris: “Depende daquele que passa, que eu seja túmulo ou tesouro. Isso só depende de você. Amigo, não entre aqui sem desejo. ” As palavras de Valéry soam como um eco a uma frase de Lacan, presente em “Os Escritos”: “Cabe a cada um por de si.”
2. Quando começa a memória da nossa última aula?
Tudo começa com a incompletude. Jorge Forbes nos prometeu começar a próxima aula com o “Terreno da incompletude”. Primeiro, contudo, ele demonstra uma certa perplexidade em relação ao pensamento de Michael Sandel e Habermas: “Eles têm os nossos costumes, mas não conseguem gerar um pensamento que inclua o real. Querem garantir a boa existência humana, com um pensamento explícito”, diz.
3. Quando começa a memória da nossa última aula?
Começa com uma definição: O que é o real? Eis o que diz Lacan: “O real é aquilo que volta sempre ao mesmo lugar”. Você não consegue fugir dele. Eu digo: vamos voltar àquela conversa? Existe o inconversável em todas as nossas conversas. Existe um real que sempre volta ao mesmo lugar.
4. Quando começa a memória da nossa última aula?
Na aflição dos filósofos, que tendem a compactar e não deixar que o real persista. O discurso psicanalítico é um discurso que inclui a falta no seu raciocínio. Por isso, a psicanálise obriga as pessoas a porem de si para concluir o pensamento. O sentido se completa na sua opção de escuta.
5. Quando começa a memória da nossa última aula?
Começa com outra pergunta: Por que Sandel não consegue incluir o real no seu pensamento? Qual é a nossa diferença fundamental? Jorge Forbes diz: “Não tenho a expectativa de que eu venha a saber dizer tudo. Sandel tem. Eu não trabalho com a expectativa da completude. Eu trabalho com a precipitação. Como eu já sei que vou ter que concluir o raciocínio precipitadamente, eu apresso o passo. Eu não tenho esperança. Qual é o problema do Sandel: ele acha que se os pais manipularem o código genético de uma criança, vão perder a variabilidade do cálculo do acaso. Para Sandel, devemos nos esforçar para não fazer melhorias genéticas para não perder a surpresa e o acaso. Posição da psicanálise: nós nunca perderemos o acaso, independentemente das melhorias genéticas. Forbes diz: eu incluo o real, Sandel localiza o real. Sandel acha que o real é o científico. O meu real é o real do desejo.
6. Quando começa a memória da nossa última aula?
Mais uma pergunta: Como fazemos para competir com a sedução da completude? Devemos ler Habermas e ler Sandel para nos antepor com algo à altura. Ou teremos um curativo para as angústias atuais. Deixar um queloide, uma cicatriz desorganizada, vai gerar um novo problema. Como a religião. Sandel não consegue escapar da religião. Nem Habermas.
7. Quando começa a memória da nossa última aula?
Começa com fatos: homens se suicidam no Brasil e levam seus filhos para a morte. Um deles esfaqueia a mulher e se mata. O outro se joga da janela com o filho nos braços. O motivo seria o desemprego. Eles realizam a fantasia do morrer junto. A imprensa quer motivo, causa e previsão para acalmar a sociedade. A previsibilidade da imprensa é a previsibilidade biológica. A imprensa e Habermas dão uma hierarquia ao biológico sobre o contexto. É a herança de um fenômeno dos anos 90, a década de determinismo biológico, a década do Cérebro, da medicina baseada em evidências. E evidência quer dizer determinismo neurótico. Pela ótica de Forbes, há uma desarticulação com a mudança de época. Estamos com um simbólico desestruturado. Estamos com um simbólico desprezado.
8. Quando começa a memória da nossa última aula?
Estudamos o quinto capítulo do livro “Contra a Perfeição”, de Sandel, – intitulado “Domínio e Talento”. Algumas definições são necessárias: Dom é Dote. Dom é aquilo que alguém te deu. O que a gente não suporta é ter um dom que ninguém deu. Se você tem um dom que ninguém deu, você é um FDP. Entre ser filho da puta e ser culpado, preferimos a segunda opção. A religião sabe disso e administra nossa culpa. Você tem um dom porque Deus te deu. Portanto você está em dívida com Deus. É terrível ter um dom sem origem. Por que nos faz sentir ladrões.
O dom é o talento e o domínio é a retirada do dom. Se mexemos no código genético e transformamos alguém, segundo Sandel, não sobrará talento nenhum. Forbes explica, contando uma piada: Sabe o que o papagaio disse para o foguete? “Com fogo no rabo até eu.”
9. Quando começa a memória da nossa última aula?
Para Sandel, uma atitude prometeica como a dos melhoramentos genéticos faz literalmente voar aos pedaços três valores morais fundamentais para organizar uma vida comum: a humildade, a inocência, e a solidariedade. Como contestar a crítica aos melhoramentos genéticos, se Sandel diz que estamos perdendo a humildade, a inocência e a solidariedade? Numa sociedade religiosa, isso é comprado como pão de queijo. Liége Selma pontua: “Há uma certa reverência ao medo neste discurso”. Ela continua: “É como se fossemos abrir uma caixa de Pandora, que escaparia totalmente ao nosso domínio.
10. Quando termina a memória da nossa última aula?
Termina com a emoção gerada por uma pergunta e suas respostas: “Quando começa a vida humana?” Foi a pergunta-chave do texto de Jorge Forbes, escrito há 10 anos, importante para definir o voto do ministro Carlos Ayres Brito na regulamentação das pesquisas em células tronco embrionárias para fins terapêuticos. Assim Forbes fecha seu texto e nos emociona: “Quando começa a vida humana? Em muitos momentos. Quando, por exemplo, as pesquisas com células tronco embrionárias possibilitarem devolver os movimentos dos braços e das pernas à vereadora Mara Gabrilli, para que possamos sentir o seu abraço.” O real volta sempre para o mesmo lugar. Assim terminamos a última aula.
Gisele Vitória, jornalista, é diretora de núcleo da Editora Três e colunista da Revista IstoÉ
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