Por Carlos Genaro
Como confiar em um intelectual, quando as bandeiras ideológicas se sobrepõem ao raciocínio claro e límpido?
Para alguns, principalmente os da patrulha ideológica da esquerda, para os quais as opiniões divergentes do seu credo são vistas como reacionárias, o que vou dizer poderá parecer um mero ataque. Não o é.
Fundamentalmente, trato do tema da honestidade intelectual no século XXI. O farei induzido por um artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 16 de setembro: O veredicto de Geraldo Alckmin, de Maria Rita Kehl.
O disparador da questão aqui levantada é a afirmação suficientemente explícita no artigo, de que “governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos pela Polícia sob seu comando” e que, quando há matanças (de nove pessoas, episódio de dias anteriores) praticadas por agentes policiais o importante é “que se consiga nomear toda a cadeia de mando acima deles”. Ora, sabe-se que no topo dessa cadeia de comando da Polícia Militar está o Governador do Estado.
Seguindo a mesma lógica, poderíamos concluir que, no topo da cadeia de comando dos crimes de corrupção ativa e passiva, de peculato, de formação de quadrilha, de caixa dois e de outros, incluídos no julgamento do “mensalão” estaria precisamente o Presidente da República em exercício naquela época.
Ora, na sequência lógica das coisas, por que esta última dedução sobre a cadeia de mando não é sequer mencionada? Por que esta omissão? A articulista elimina esta dedução porque não convêm à sua ideologia?
A ideologia se sobrepõe à lógica e aos fatos? Sobrepõe-se à clareza intelectual? Permanecendo nesta mesma orientação, surge a pergunta: Como confiar nos argumentos de um intelectual? Em quem confiar? Porque, a depender da lógica do artigo, parece ser admitido que as bandeiras ideológicas e partidárias se sobreponham ao raciocínio claro e límpido. Mas não era precisamente isso o que ocorria antes do Século XV, quando os dogmas da Igreja se sobrepunham às descobertas de investigadores, pesquisadores e pensadores como Copérnico, Galileu ou Giordano Bruno?
Como não estamos mais na época do obscurantismo, os pensamentos de quem questiona o esquerdismo sobrevivente depois da queda do Muro de Berlim não deveria jamais receber o rótulo ad hoc como sendo “de direita”, ou “reacionário” ou ainda neoliberal.
Não estou aqui a defender o Governador do Estado, mas contrariamente a isso, concordar com a ideia da “cadeia de mando”, ou seja: assim como o Governador é responsável também pelos atos de seus subalternos, o Presidente da República também o é no que se refere ao que fazem os do segundo escalão. Desta forma, alegar que “não sabia de nada” não tem alguma coerência e serviu apenas para o silêncio cúmplice de uma parte da suposta “intelectualidade”.
Posso frisar que isto não é uma diatribe político/partidária, mas comporta um horizonte muito mais amplo: o da descrença crescente na autoridade vertical, aquela que antes estava acima do comum dos mortais. Autoridades como os políticos, a hierarquia religiosa, os ocupantes de cargos públicos e…. os intelectuais.
Quando Lacan diz “O Outro não existe” uma das consequências imediatas é o questionamento de todo idealismo ingênuo de conceitos supostamente sagrados e imutáveis. Mais, ainda, não deve se dar consistência imaginária ao Outro (pois seria pura falsidade) nomeando-o como “inimigo” ou como “traidor” ou como “líder iluminado”. Se o Outro não está mais lá onde a civilização o colocou antigamente (o lugar de onde emana um saber verdadeiro), o papel do intelectual também sofre mudanças: ele não é mais o portador de uma suposta verdade revelada aos “bem pensantes”. Agora o intelectual não é mais aquele que sabe inquestionavelmente, mas aquele que sabe questionar o que sabe.
Um lugar de honestidade radical.
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(*) Alusão a uma frase de Lacan na sua Conferência em Vincennes em 3/12/1969, publicada como Analyticon no Seminário XVII, O avesso da psicanálise. A frase é a seguinte: ”É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão”. E termina por qualificar os estudantes como hilotas do regime de Pompidou.