O que quer queer dizer? 26/09/2017

Por César Nogueira

Queer, palavra que deu nome à exibição Queermuseu, encerrada antes do tempo pelo Santander Cultural em Porto Alegre (RS), era gíria inglesa para estranho, extravagante. Tem origem no alemão “quer” – oblíquo, perverso, fora de centro. Usada com intenção pejorativa para estigmatizar gays, lésbicas, transexuais, travestis etc., foi apropriada por aqueles que pretendia agredir. Uma ala do movimento LGTB que passou a autodenominar-se queer, afrontando os padrões heternormativos e também os homonormativos (que vêm com reserva as formas mais espetaculosas de manifestação de gênero). A palavra queer está aí então para nos dizer que é normal ser estranho e vice-versa. Salve, Freud, que nos mostrou o estranho como algo que se oculta no familiar, que não deveria aparecer, mas apareceu.

A exposição foi abortada pelo Santander depois que ativistas de movimentos conservadores, encabeçados pelo MBL, com apoio da igreja, desencadearam campanha para tirá-la do ar. Escandalizaram-se com o que estava lá exposto com o propósito de desescandalizar. Sinal de que as obras tocaram um ponto sensível que se pretendia manter invisível e não exposto. O blogueiro que encabeçou a campanha mantém um blog com o sugestivo título de Mamãe, falei! Num vídeo que teve mais de 300 mil views, dois sujeitos  percorrem a exposição afetando indignação, aos brados, diante de imagens que, na visão deles, incitam à pedofilia e à zoofilia, ou configuram desrespeito aos símbolos religiosos. Um deles veste uma camiseta com a inscrição “Sou machista”, em letras grandes sobre o peito bombado, como quem se protege contra o risco de estar num ambiente infectado.

É interessante deter-se sobre as obras que foram alvo da maior ira. Não para uma análise do ponto de vista artístico –- porque não é esse tipo de crítica que está em causa —, mas simbólico. Veja-se, por exemplo, a instalação do artista Antônio Obá. Ela coloca o espectador diante de uma bacia repleta de hóstias que trazem inscritas palavras como língua, boca, sangue, vagina, cu, vulva, bunda, suor. Será a palavra aderida ao símbolo que provoca a estranheza incômoda? No credo católico, as hóstias consagradas são o corpo de Cristo. Mais do que representar, elas efetivamente pretendem ser esse corpo e, como tal, são comidas pelos fiéis durante a cerimônia da missa. É um ritual que também tem seu quê de queer — não por acaso, mas pelo poder que o estranho e misterioso exercem sobre os fiéis. A obra de Obá remete ao corpo real cuja ideia está encoberta pelo sagrado. O estranhamento que causa é tanto maior porque as palavras designam partes de um corpo de mulher e remetem ao sexo e ao prazer e não à dor e ao sacrifício. 

Outra obra que os defensores da moral e dos bons costumes destacaram para justificar sua fúria foi Cena de Interior II, de Adriana Varejão. A tela de 1994 retrata, no interior de uma casa grande, cenas sexo em suas várias combinações e cores — homem com homem, mulher com mulher, homens e um animal, brancos e negros e amarelos. Tal como ocorre no recôndito das casas. A defesa da artista, acusada de fazer apologia da zoofilia, põe a arte no seu lugar: “Não faço apologia a nada; como artista, apenas busco jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas. É um aspecto do meu trabalho, a reflexão adulta.” 

“Travesti de lambada e deusa das águas” e “Adriano bafônica e Luiz França She-há” (2013), de Bia Leite, atraíram as acusações mais veementes, de “apologia a pedofilia”. São telas que abordam o tema da homossexualidade na infância e são inspiradas em relatos de pessoas que viveram os dramas ou os traumas de quem não segue a norma hetero e cresceram sendo chamadas de “viadas”. As imagens e inscrições baseiam-se em fotos e depoimentos publicados no blog Criança Viada (http://criancaviada.tumblr.com). O que causa estranhamento? Trazer para a parede de um museu o que as paredes dos banheiros das escolas estão cansadas de mostrar. E por que razão em tudo que desvela os pretensos moralistas veêm apologia? A razão é tão velha que vale um latim: “De te fabula narratur”.

César Nogueira é artista plástico, escritor e aluno do corpo de formação do IPLA.

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