Letícia Genesini
Um passeio literário
O que há em um nome? A questão do nome próprio que conduziu nosso último encontro, a partir do texto de Jorge Forbes, “Os caminhos lógicos da psicanálise: o nome próprio” chega, como vimos, a duas principais vias pelos caminhos da lógica: “De um lado, encontramos Russell e Frege, e de outro, Saul Kripke”[1]. Para os primeiros, a significação do nome é estabelecida por referentes. Para o segundo, o nome próprio não depende de predicativos, é ele um designador rígido que se mantém o mesmo independente do contexto — em termos lógicos, em todos os mundos possíveis.
Neste ponto, peço licença à palavra precisa da Lógica, para me enveredar pelo reino onde a palavra não pode ser outra coisa que inexata, onde ela trapaceia a língua[2], esse lugar ao qual chamamos de literatura. Afinal, “O que há em um nome” não é uma questão só nossa:
Ato II, Cena II
Julieta:
O que há num nome? O que chamamos rosa
Teria o mesmo cheiro com outro nome;
Antes de respondermos à Julieta, quero trazer para cena outras duas personagens que travaram batalhas com o nome próprio.
Em “Um, Nenhum, Cem Mil”, de Pirandello, Vitangelo Moscarda inicia sua desventura quando, olhando, sem muito pensar, seu rosto no espelho, sua mulher — que o apelidava de Gengè — lhe pergunta se ele observava que seu nariz pendia para a direita. Como, em todas suas décadas de vida, ele havia jamais notado que seu nariz pendia pra lado algum, muito menos para direita, passa a perceber que é um estranho, não só para os outros, como para si mesmo. Com esse tropeço, ele caminha pela cidade, constatando que para cada pessoa há um Vitangelo, todos estrangeiros a si próprio. Frente a tantos referentes, Moscarda se coloca paralisado, e o único movimento que ele traça para liberá-lo do impasse é a loucura.
Em A Odisseia, Ulysses, ao se apresentar para combater o Ciclope Polifemo, diz que seu nome é “Ninguém”.
“Você quer saber, Polifemo, por que, assim, nenhum de nós vem feri-lo? Eu lhe direi, para que, talvez, você nos favoreça. Não me perguntas o nome que trazem meus pais, minha cidade? Do lar em que estou muito longe? Pois eu te direi: sou Ninguém, meu pai e minha mãe me chamam Ninguém, todos os meus amigos me chamam Ninguém.”
A astúcia dessa jogada é revelada depois. Quando Ulisses fere o olho do ciclope, ele grita de dor. O grito alerta os outros gigantes que tão logo são apaziguados, uma vez que Polifemo diz a eles que “Ninguém” está o machucando. Assim, Odisseu, escapa e segue sua jornada.
Nossas três personagens sabem que o nome próprio não tem seu sentido garantido a partir de referentes externos. A consequência dessa constatação para cada uma delas, porém, é vastamente diferente.
Voltemos à Julieta, agora com toda a estrofe de Shakespeare:
É só seu nome que é meu inimigo:
Mas você é você, não é Montéquio!
O que é Montéquio? Não é pé, nem mão,
Nem braço, nem feição, nem parte alguma
De homem algum. Oh, chame-se outra coisa!
O que há num nome? O que chamamos rosa
Teria o mesmo cheiro com outro nome;
E assim Romeu, chamado de outra coisa,
Continuaria sempre a ser perfeito,
Com outro nome. Mude-o, Romeu,
E em troca dele, que não é você,
Fique comigo.
Julieta rejeita que a identidade seja constituída por toda e qualquer alteridade. Referente externo algum basta para dizer quem é Romeu, e até seu próprio nome pode enganar. Chamasse ele o que fosse, a identidade permaneceria imutável, pois, para Julieta ela é uma coisa em si.
Para Vintangelo (Moscarda, Gengê), a alteridade só é capaz de abrir uma série de enganos, mas não há refúgio possível. Para ele é para sempre perdida a possibilidade de uma identidade estável. Nenhum referente basta, nem externo, nem interno, e a identidade varia sem ponto de parada possível. Nessa vertigem do relativismo, o único ponto final é a morte. Só ela fixa os significados. E a vida, posta em aberta, aqui, é uma recusa a toda identidade.
“Sem nome. Sem lembrança hoje do nome de ontem; do nome de hoje, amanhã. Se o nome é a coisa; se um nome é em nós o conceito de tudo o que está fora de nós; e sem nome não se tem o conceito, e a coisa permanece em nós como cega, não distinta e não definida. Portanto, o que levei entre os homens, que cada um o inscreva, como uma epígrafe funerária, na testa daquela imagem com a qual me apresentei, e a deixe em paz, não fale mais sobre isso. Não é nada mais do que isso, uma epígrafe funerária, um nome. Convém aos mortos. Àqueles que concluíram. Eu estou vivo e não concluo. A vida não conclui.”
Assim, voltamos ao clássico inesgotável que é a Odisseia. Se a Ilíada é o exemplo absoluto da epopeia, a Odisseia questiona os limites do gênero. Tendo sobrevivido à guerra de Troia, a morte não selou com a glória os feitos de Ulisses. Assim, ele inicia sua viagem de retorno à casa em uma busca também por sua identidade, seu lugar no mundo. É preciso notar, ainda, que ao omitir seu nome ao ciclope Polifemo, Ulisses rompe com a honra do herói que deve se apresentar diante de um adversário. Fazer a opção da astúcia no lugar dos ritos da honra, porém, não degrada nosso viajante. É como se, ainda no século VIII a.C., a obra nos apontasse uma possibilidade, mesmo que longínqua, de que a identidade possa variar, mas sem, de alguma forma, perder seu eixo. Ulisses seria, em certa medida, um homem pronto para todas as circunstâncias[3].
Para Julieta a identidade é um lugar em si.
Para Vintangelo é lugar nenhum.
Para Odisseu, é algum lugar algum.
Retomando nosso diálogo com a lógica, se o Nome Próprio não é garantido pelo contexto, mas é o mesmo em todos os mundos possíveis, podemos perguntar: por quê?
Ele pode ser o mesmo por ter uma essência — é o que diz Julieta.
Ele pode ser o mesmo por não conter nada, assim é indiferente a toda variação — é o que diz Vitangelo.
E ele pode ser o mesmo por admitir um ponto de silêncio, uma repetição sem possibilidade de reencontro[4] — é o que mostra Ulisses.
Essa diferença está evidenciada em nosso texto de estudo:
“Um nome próprio, nos diz Kripke, é um designador rígido.
Prestemos atenção ao termo: “designador rígido” Designa e não significa. Designar quer dizer apontar, indicar, mas não significar. Rígido diz respeito ao fato de ser invariante, ou seja, alterando os contextos continua inalterado.
(…)
Ao dizer que o nome próprio designa, mas não significa, estamos dizendo que sua significação sempre nos escapa. O referente do nome próprio é inerente a ele mesmo e sendo o mesmo nos diversos mundos possíveis não temos o recurso à diferença para fazer a significação. Sendo rígido, sendo sempre o mesmo, põe problema à metaforização, e nenhum predicado lhe é imanente.
(…)
Examinemos a seguinte frase, extraída de “Subversão do Sujeito”: “Ele é como tal impronunciável, mas não sua operação, pois ela é o que se produz cada vez que um nome próprio é pronunciado. Seu enunciado se iguala à sua significação” (Escritos, pg. 302 port.Ed. Perspectiva 1 / 819 fr.).
O nome próprio, nessa definição de Lacan, é o enunciado que se iguala à sua significação.
Ora, o nome que responde quem ”é eu”, responde, mas não posso entender.
A verdade do sujeito é uma tautologia. Igual a si mesma, é uma verdade que aponta, designa, mas não significa.”
Jorge Forbes
Os Caminhos lógicos da psicanálise: O Nome próprio
Seguindo nosso passeio pelo fio do problema à metaforização e pela identidade como uma tautologia, podemos chegar a uma pequena frase que colocou a literatura em desacordo:
A rose is a rose is a rose.
Com essas 3 palavras postas em repetição, Gertrude Stein deixou uma ferida no mundo.
É a frase da impossibilidade da metáfora. Para dizer isso, Stein não só responde à Julieta, afinal está questionando a metáfora lírica por excelência. Basta abrir um livro de ensino fundamental, ao dizer o que é uma metáfora, virá o exemplo: “a menina é uma flor”. O sentido literal de flor se esvazia, e o sentido figurado extravasa, os predicados de “flor” tornam-se os predicados de “a menina”. O que Gertrude Stein faz é o desencanto da rosa. Ela protesta: uma rosa não é o amor, a rosa não é a beleza, a rosa não é a perfeição. Uma rosa é uma rosa.
Mas para falar do desencanto, apenas dois tempos bastaria.
São 3 tempos. É uma série, que varia e varia e retorna ao mesmo lugar. Ao ponto de silêncio: a algum lugar algum.
Uma rosa é uma rosa é uma rosa.
A rosa, posta na página, é uma palavra. E a palavra põe em jogo toda sua possibilidade semântica, ao mesmo tempo que escapa à possibilidade de um sentido total. Há um ponto de silêncio que rejeita ser dito, e que não é solucionado por nenhum outro vocábulo posto em seu lugar. É uma tautologia. É como o poeta[5] que diz “O que quer dizer um poema? O que está dito ali… se pudesse escrevê-lo de outra maneira, não faria um poema.”
Uma rosa é uma rosa é uma rosa.
Outra maneira de dizer que é uma tautologia, é dizer que é uma coincidência[6]. É um ponto de coincidência frente à arbitrariedade do signo. Não é por menos que a jornada de Odisseu recebe o nome de Odisseia. Não haveria outro nome possível.
Julieta está certa: não há nenhum vínculo necessário entre o nome rosa e a coisa da rosa. Mas Julieta está errada, o vínculo arbitrário não é indiferente. Mude o nome e teríamos que reescrever todas as nossas histórias.
A impossibilidade da metáfora marca a impossibilidade da harmonia. Em uma Terra em irredutível desordem perde-se a possibilidade de que a identidade seja constituída como um lugar no mundo. Drummond demonstra isso ao dizer:
Mundo, mundo, vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma solução
Mundo, mundo, vasto mundo
Mais vasto é meu coração
Em um mundo completo, talvez fosse possível cantar a harmonia, talvez em terza rima ao padrão do infinito, como fez Dante rumo ao paraíso. Mas Drummond é o poeta da impossibilidade da harmonia. Sem nenhuma pretensão estatística ele foi, talvez o poeta que mais cantou o mundo[6] para, justamente, marcar sua impossibilidade de completude.
Não à toa, o “Poema de 7 faces”, de onde é tirada essa estrofe, é o poema da identidade e o poema da metonímia. Nele, o sujeito se apresenta, mas, já de largada, sob o signo do desajuste: “vai Carlos, ser gauche na vida”. E para além da terceira estrofe, onde a metonímia reina, a forma do poema é toda metonímica. Suas 7 estrofes rompem com a linearidade discursiva, são autônomas, tanto em tema, quanto em estilo. Sem padrão de versos ou rima, cada uma acena a temas e estilos diferentes do poeta, ao mesmo tempo que compõe os fragmentos — faces — desse sujeito, sem nunca, porém, chegar a uma totalidade.
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Como e por que o Nome Próprio consegue ser ao mesmo tempo um designador rígido e variável é um problema para a Lógica, mas seu fato encontra lugar na poesia. O que resta é o que fazer com o Nome.
Sobre isso, apenas um último comentário. Quando falamos do Nome Próprio como uma tautologia que, no impedimento da metáfora, só é capaz de gerar metonímias, essa relação se torna óbvia ao falamos do fazer de um artista. Olhamos para um quadro e dizemos tranquilamente: é um Picasso. Lançamos uso da figura de linguagem sem nos darmos contas das implicações: o artista é um sujeito, sem predicado, sem essência, sem lugar no mundo. Mas que é capaz de fazer com que as coisas, postas no mundo, recebam seu nome.
[1] FORBES, Jorge. Os Caminhos lógicos da psicanálise: O Nome próprio (*). Disponível em: http://jorgeforbes.com.br/assets/files/Os-Caminhos-logicos-da-psicanalise3.pdf
[2] Referência à fala de Roland Barthes em “Lição”.
[3] Conceito de Jorge Forbes para o final de análise
[4] “Repetir não é reencontrar a mesma coisa” Jacques Lacan (A lógica do fantasma, seminário 1966-1967)
[5] Ferreira Gullar
[6] Referência ao conceito de Jorge Forbes: do acidente à coincidência