O que dizemos quando falamos pelo outro? 23/10/2014

Por Carolina Jesus Pereira

Não havendo garantias incondicionais para a compreensão, colocar à prova aquilo que se lê ou se ouve é uma necessidade imperativa

Em outubro de 2011, um grupo de 170 indígenas guarani-kaiowás, do Mato Grosso do Sul, publicou, nas redes sociais, uma carta em resposta a uma ordem judicial que determinava seu despacho do território em que vivem. Em reação à ameaça de despejo, os índios declararam: “Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretarem a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui”. Em outro trecho, afirmavam: “nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui.”.

O ato repercutiu rapidamente pela imprensa em uma cena que poderia ser ambientada com trilha sonora de Caetano Veloso: “Você não está entendendo quase nada do que eu digo…”. Alheios (ou indiferentes) ao fato de que os índios lutam pela demarcação de seu território há décadas, resistindo a invasões que ocorrem assiduamente e à presença de pistoleiros que os mantêm confinados em um espaço pequeno demais para o número de pessoas, setores da mídia jornalística propalaram o dizer dos índios como um anúncio ou uma ameaça de suicídio coletivo.

Em poucos dias, a carta passou de símbolo de resistência à nota de desistência. Jornais e revistas ignoraram as palavras do texto e o desejo implícito dos índios e veicularam manchetes como “Índios Guarani-Kaiowá anunciam suicídio coletivo no MS” (Revista Época), “Indígenas ameaçam cometer suicídio coletivo” (Jornal O Globo) e “Índios ameaçam fazer suicídio coletivo” (Revista Info), por exemplo. Que chave de leitura pode ter sido usada para que “morte coletiva” virasse, de repente, “suicídio coletivo”?

Ainda que a leitura possa ser considerada uma atividade sobredeterminada e que seu percurso exato seja indecifrável, é possível pensar sobre alguns eventos desencadeantes da leitura feita pelos jornalistas. Talvez tenha sido fruto de falta de atenção, ou de um lapso não planejado que poderia se explicar por uma intenção inconsciente. Talvez tenha resultado de ação deliberada, visto que eventos inusitados parecem mais interessantes aos olhos da mídia. Talvez revele uma dificuldade em lidar com o diferente, um grupo com outra experiência histórica, anseios, necessidades, códigos morais e toda uma gama de maneiras de viver e pensar que diferem das nossas. Pode ser ainda que, intolerantes à castração, esses jornalistas tenham sido incapazes de reconhecer aquilo que desconheciam e suas assimetrias em relação ao outro. De qualquer modo, cada jornalista que republicou a suposta notícia acabou por expressar sua própria alienação. Centrados em uma lógica obtusa, abstiveram-se de levantar hipóteses e colaboraram para a reprodução desenfreada de informações dúbias.

Se ler com rigor corresponde a acessar o texto de forma exploratória, caberia ao leitor ter feito perguntas como: “Se ao usarmos uma palavra deixamos de usar outra, por que os índios utilizariam ‘morte’ e não ‘suicídio’ caso desejassem indicar uma intenção de se matar?”; “Que efeito de sentido cria essa escolha lexical?”; “O que é possível apreender a partir do texto que construíram?”; “É possível sustentar a tese de que a expressão ‘morte coletiva’ deixa inequívoca a ideia de suicídio?”; “Que lugar ocupa o jornalista para divulgar o que não foi dito?”.

Essas reflexões nos induzem a concluir que, não havendo garantias incondicionais para a compreensão, colocar à prova aquilo que se lê ou se ouve é uma necessidade imperativa. Mesmo aceitando a noção de que a linguagem é opaca e trilha seus próprios descaminhos, acreditamos que os dizeres são passíveis de análise e que uma profunda reflexão acerca de sua materialidade pode contribuir para que se encontre a justa medida entre as inferências que precisam ser feitas e aquelas que se constituem como falsos alarmes, extrapolando ou distorcendo os enunciados.

Quando tomamos a fala do outro como objeto de análise, sobretudo se ocupamos uma posição que nos permite reproduzi-la com “efeitos de verdade”, não podemos assumir o risco de violar sentidos potenciais. Se “é pelas consequências do dito que se julga o dizer”, como afirmou Lacan em 1973, cabe pensar a respeito da posição dos agentes da mídia que, em vez de dar voz aos índios, os calaram.

Carolina de Jesus Pereira é pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise – GEPPEP, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde, no momento, está cursando mestrado.