Por Alain Mouzat
O psicanalista encaminha pacientes para um psiquiatra avaliar a necessidade de um tratamento medicamentoso?
É bem conhecida a oposição dos psicanalistas aos tratamentos medicamentosos. Psicanalista não dá remédio. Isso é verdade. Nenhum psicanalista dá remédio: ele não tem formação para tanto, não está autorizado e nem se autoriza. Quem dá remédio é médico, formado em medicina, com especialidade, ou não, em psiquiatria: ele tem bloco de receita, assinatura autorizada, carimbo de CRM. Pode acontecer que o psicanalista seja também médico ou médico psiquiatra, também atuando como tal.
Mas não é enquanto psicanalista que ele receita.
Assim mesmo, não raras vezes, o psicanalista encaminha um paciente a um psiquiatra ou a um médico para uma avaliação que pode levar a um tratamento que inclua medicação. Por solicitação do paciente, ou mesmo sem, até mesmo contra a vontade do paciente que tem de ser convencido da necessidade do encaminhamento.
Quando é que alguém pede análise? Quando a solução que cada um construiu para sua vida se torna insustentável: quando, incapaz de responder à intrusão de um evento qualquer – pode até ser uma simples palavra do outro – ele se encontra jogado num desamparo em que a satisfação que ele retirava de sua posição está ameaçada.
Todos nós temos soluções prontas. Mas um dia elas não dão conta de sustentar nossa vida, nossos amores, nossas escolhas, o que chamamos de nossa posição subjetiva. “Se eu estivesse no seu lugar…”, mas não está. Cada um está aferrado à sua solução: pela sua história individual, pela satisfação que tira de sua posição – satisfação que muitas vezes lhe escapa e da qual, de repente, se sente vítima: eu gostaria que fosse de outro modo, mas “é mais forte do que eu”. Gostaria mesmo?
O psicanalista intervém exatamente nesse ponto: perguntando, como o fez Freud com uma das suas mais famosas pacientes – Dora: nessa queixa contra um mundo que você denuncia qual é a parte que lhe cabe? Isso é o que se diz implicar o paciente na sua queixa. Sem esse movimento que permite ao paciente perceber sua “posição de gozo”, ele não estará livre de se deslocar dessa posição.
Esse convite a se responsabilizar pela sua posição, para ganhar a liberdade de fazer outra coisa, faz perder o chão no qual se sustentava a queixa. Experiência que não está livre de angústia.
Muitas vezes o paciente demanda outra coisa: que o psicanalista – aquele que ele vem consultar porque ele o investe de um saber sobre seu mal-estar – livre-o do incômodo de sua posição, sem ter que pagar o preço do engajamento de sua responsabilidade. Ele fantasia uma intervenção mágica, um toque da varinha que o mantenha num ideal no qual ele se reconhece de bom grado. Mas não há… A não ser o remédio, sonhado então como evitamento, sustento da ilusão que vai conferir mais um pouco de sobrevida à solução já falida. Nessa perspectiva, o remédio desresponsabiliza, tem efeito contrário da psicanálise.
Nesses casos o único remédio com o qual concordaria o psicanalista seria uma pílula de coragem. Coragem para enfrentar, e não covardia da fuga.
Mas então por que um psicanalista encaminha um paciente para um psiquiatra para ser eventualmente medicado?
Há casos em que qualquer intervenção visando a responsabilizar o paciente o encontra inundado pelo seu “gozo”, absolutamente submergido e entregue, incapaz de qualquer movimento de deslocamento. São situações limites que fazem com que toda intervenção seja logo posta em reforço do gozo: fragilidade de certas posições depressivas, delírio de psicoses, em que são necessárias intervenções que possibilitam minimamente que o sujeito se “descole” de seu gozo.
No caso, a intervenção medicamentosa é urgente, sem ela a psicanálise não tem efeito, e as intervenções do psicanalista até podem desencadear o que chamamos de “passagem ao ato”. O paciente dá consequência, não à “sua posição de gozo”, mas a seu gozo.
O curioso é que, não raramente, nesses casos, o paciente está reticente a esse encaminhamento, ou pelo menos não expressa uma demanda nesse sentido. Muitas vezes já teve experiências negativas. Aí tem necessidade de afirmar a confiança no profissional a que encaminhamos. Para o psicanalista é absolutamente indispensável, para poder contar com a eficiência de sua intervenção, para que sua intervenção possa incidir a favor do deslocamento e não da fixação do gozo.
O psicanalista encaminha pacientes para um psiquiatra avaliar a necessidade de um tratamento medicamentoso? Sim. E muitas vezes ele tem de convencer o paciente dessa necessidade, ou mesmo impor esse encaminhamento como condição. Mas não é para responder à demanda do paciente, para encontrar rotas de fuga de sua implicação no seu sintoma, não é para desimplicá-lo de sua queixa. Mas, sim, para tornar possível o tratamento.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana