Letícia Genesini
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Drummond
Não há leitor que desconheça esses versos. Escrito em 1967, “Uma Pedra no Meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, é um poema (até hoje) amado e odiado. Entre o enigma e a tautologia, é ao mesmo tempo descartado como lixo e cultivado como joia. O melhor poema do modernismo, o pior poema do modernismo.
Sem narrativa ou lirismo, seus 10 versinhos, muitos dos quais se repetem, formam uma estranha topologia. Não há por onde o sentido caminhar, preso a essa bendita pedra, ele freia e retorna sobre si mesmo.
As críticas, assim como os elogios, não foram poucas, nem tímidas. Drummond, no entanto, nunca respondeu a nenhum deles. Não se justificou, nem defendeu sua criação. Ele os colecionou em um livro: “Uma Pedra no Meio do Caminho – a biografia de um poema”.
Um tomo de quase 400 páginas se ergueu sobre os 10 versinhos.

Quem se aventura à leitura, porém, logo se cansa. As explicações, assim como o esculacho, tornam-se nauseantes. Os comentários se confundem e se empilham, um após o outro, após o outro, após o outro… até perderem o sentido. O resultado não é a soma das provas, é a surdez frente a tantos murmúrios. Ao fim, ficamos indiferentes às vaias (e aos elogios), que viraram barulho de fundo.
Fechamos o livro. O que resta?
O poema.
Seus 10 versinhos, que os comentários não solucionam ou diluem. “Uma Pedra no Meio do Caminho” sobrevive à contradição e ao tempo, e é a ele que voltamos, e voltamos e voltamos, sem cessar.
***
Se Drummond, aliás, houvesse confrontado os insultos, mais um viria ao seu encontro. A cada prova de verdade que ele emitisse, haveria uma contraprova, e outra e outra. Ao invés de calar a disputa, ele haveria erguido um estandarte para ela se apoiar. Ou, como disse Lacan em Televisão, “é entrar no discurso que a condiciona, nem que seja a título de protesto[1]”.
Não, ele não fez nada disso, pois os poetas sabem, contrariamente aos bastiões da verdade assegurada, que o discurso não caminha apenas em linha reta — por contradição ou retificação — ele faz curva.
Ainda em “Televisão”, Lacan abre sua entrevista com a famosa afirmação: “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível materialmente: faltam palavras”. Dessa angústia, todos compartilhamos: uma vez criada a linguagem, a Verdade afastou-se do mundo.
Por um tempo, ela nos pareceu assegurada por firmes instituições verticais que separavam em um fio o dito da contradição. Esse eixo, porém, foi retirado do mundo. Ou melhor, deitou-se, e ao ser deitado, se multiplicou — na metáfora de Jorge Forbes, “estamos em TerraDois”. Alguns tentam reconstituí-lo, afinal, como saber se não estamos na impostura[2] sem nosso eixo para ordenar o que é cá e o que é acolá? Já outros — os poetas — sabem, assim como a psicanálise, que a impossibilidade de se dizer a verdade, ela toda, não é a morte do discurso, é seu princípio.
O poema, para a frustração de quem vê na interpretação o desvendar de um mistério velado, não se edifica sobre um sentido único, mas justamente sobre o que na palavra escapa ao sentido. Em seu gesto, Drummond mostra que a palavra poética não se afirma no contraponto de uma suposta negação, e sim por si só — Eppur si muove!
É a Ética do Artista, aponta Jorge Forbes. A criação em sua radicalidade: sabendo que não há prova alguma capaz de assegurar a verdade — pelo menos, não toda — cabe ao sujeito sustentar o que faz e o que diz. Invenção e responsabilidade, ele nomeia.
Que não se enganem, não se trata de um sentido ensimesmado, uma suposta verdade do Eu que deve ser recuperada pelas vias do “autoconhecimento”. Nada mais longe, aliás, da descoberta Freudiana de que somos, para nós mesmos, um estranho. Nem se trata, como apontam os pessimistas, de uma Era do total relativismo. Não é essa a resposta da psicanálise (ou da arte). Trata-se de uma aposta na articulação das diferenças[3], na ideia de que a sociedade pode se construir fora do consenso, e na possibilidade de que, uma vez retiradas as verticalidades que nos orientavam, o mundo não perdeu o eixo, mas sim, tal qual um móbile de Calder, pode se sustentar por um intangível[4].
“Pórtico partido para o impossível”, dirão alguns.
É, porém, o que faz o analisando a cada sessão, se defrontando com algo nele aquém e além de toda significação, mas que ainda sim existe. E é o que faz a poesia, que sobre a falha produz não um sentido unificado, mas sentidos que, mesmo dissonantes, podem ser compartilhados.
Sim, a palavra poética é intransigente, ela resiste à toda demanda de prova ou explicação. E é essa resistência da poesia que nos mostra que a sociedade não se faz somente pelo o senso comum. Ela pode se fazer sobre a pedra.
[1] “É certo que aguentar a miséria, como diz o senhor, é entrar no discurso que a condiciona, nem que seja a título de protesto” Jacques Lacan (IN: Televisão)
[2] Jacques Lacan, In: Seminário 11 – Os 4 Conceitos Fundamentais da Psicanálise.
[3] Referência ao conceito de Jorge Forbes
[4] Idem.