O pai perfeito 28/08/2014

Por Marcelo Veras

Os avanços da biologia são presenças constantes no grande espetáculo da mídia. Assim, a fronteira cada vez menor entre os progressos científicos e a eugenia não impõe trabalho apenas aos comitês de ética, ela ganhou assento na sala de estar da família contemporânea.

Acabo de chegar do Colóquio do Observatório Lacaniano, em Florianópolis, onde foi possível discutir a ascensão das novas igrejas pentecostais, um século após o decreto nietzscheano da morte de Deus. Destacarei apenas um dos inúmeros pontos que foram debatidos, a conjunção entre ciência e concepção. É curioso conviver com esse retorno maciço da religião no momento em que tanto se aposta nas novas e cada vez mais sofisticadas técnicas de reprodução e clonagem. Diante da confusão que se instala, seria no mínimo anacrônica procurar sustentar que a psicanálise é familiarista – lembrando da famosa acusação à psicanálise feita por Deleuze e Guattari no Anti-Édipo – uma vez que ela vem sistematicamente interrogando os destinos do ternário pai, mãe e filho, imortalizado pela tríada edípica freudiana.

Tampouco é unanimidade a aceitação de que o homem é o filho de Deus. Fato constatado na clínica de nossos dias é o homem que agora busca “se criar” à sua imagem e semelhança, ou a seus ideais. Assim, o homem contemporâneo passou a conviver com a alegoria de que as famílias do futuro serão programadas, eliminadas ou modificadas a partir de características genéticas. É o que Bauman chamou de “sonho de pureza” da pós-modernidade.

Temos então o retorno de um velho fantasma guardado no fundo do armário, depurar a nova família de todos os erros, inclusive os genéticos. Essa possibilidade não deixou de influenciar as novas utopias familiares que lidam cada vez mais com aquilo que Lacan chamou, em seu texto Complexos Familiares, de declínio social da imago paterna. Hoje, a permanência – ou não – do Nome-do-Pai é mais uma questão de ordem jurídica do que um poder irrefutável e natural.

Os avanços da biologia são presenças constantes no grande espetáculo da mídia. Assim, a fronteira cada vez menor entre os progressos científicos e a eugenia não impõe trabalho apenas aos comitês de ética, ela ganhou assento na sala de estar da família contemporânea. Nesse sentido, a clonagem, a seleção de embriões e muitos outros procedimentos permitem-nos sonhar com a alegoria de uma “paternidade perfeita”, uma vez que ela não transmite a função paterna em sua relação com o gozo, sempre transgressor, e sim em sua relação com os ideais da época. Nesse sonho, busca-se a transmissão sem restos, uma transmissão dos ideais de pai para filho, sem defeitos.

Ou seja, com a alegoria da clonagem, as figuras do pai e da mãe tornaram-se indistintas, uma vez que a transmissão não se funda no impossível da relação entre os sexos, mas exatamente, na soma dos ideais.

Miller traduz a questão do pater incertus referindo-se à mãe como um fato da natureza e ao pai como um fato da cultura. São as novas técnicas de adoção de embriões e o novo conceito de assinatura genética do pai que nos evoca uma inversão do princípio do direito romano: mater certa, pater semper incertus est.

O avanço científico fez do exame de DNA a resposta contemporânea à pergunta sobre o que é um pai. Ou seja, a paternidade sucumbiu ao imperativos de quantificação e verificação, próprios ao ceticismo atual. Amanhã não mais pediremos a um pai que ele reconheça seus filhos. Ele simplesmente passará por uma máquina que vai validá-lo ou não”, comenta Miller[1].

Contudo, o Nome-do-Pai é um modo de tratamento simbólico do real contingente em todo processo de filiação. A paternidade perfeita, aquela que não deixa restos ou extravios da contingência, é um delírio de recuperação e transmissão da imago paterna que faz da frase “tal pai, tal filho” um retorno irônico ao estádio do espelho. Se antes creditávamos ao Nome-do-Pai a reconciliação entre contingência e filiação, cabe a cada um, no momento atual, inventar a metáfora que faça do filho o fruto de um desejo que não seja anônimo.

Marcelo Veras é diretor da Escola Brasileira de Psicanálise


[1] Miller, J-A, La séduction génétique, Paris: Charlie Hebdo, 2008