Por Ernesto Bertoldo
A peça Carta ao Pai – Fragmentos de texto de Franz Kafka nos permite traçar um paralelo entre a relação pai e filho com a de cidadão e Estado
Acreditar nas instituições não parece fazer parte do repertório dos brasileiros que gostariam de viver em um país que priorizasse a cidadania em seu sentido mais pleno. Em Carta ao Pai – Fragmentos de texto de Franz Kafka, recente montagem que esteve em cartaz em São Paulo até o último dia 29 de setembro, a atriz e diretora Denise Stoklos escancara, de forma primorosa, uma resposta a essa insatisfação que sentimos frente a um Brasil que adia, por vezes, e das mais diversas formas, a possibilidade de um existir digno.
A peça trata do texto Carta ao Pai, do escritor tcheco Franz Kafka, em que o autor endereça a seu pai uma correspondência que jamais chegou ao destinatário. Nessa carta, Kafka não faz por menos: expõe de forma contundente a relação com o pai, por quem tinha um profundo amor, ao mesmo tempo em que nutria um medo inominável, conforme exposto a seguir:
Querido pai,
Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte, justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento. (Franz Kafka, Carta ao Pai, p.17-18)
Em um gesto singular, Denise empresta seu corpo para que o público possa ter a real dimensão da dor psíquica vivida por Kafka nesse enfrentamento com seu pai. Comprometida com o seu modo ímpar de fazer teatro, o seu teatro, a atriz mantém seu estilo próprio de trabalho em que o ator é o fundamento da cena e sua contingência política é ponto de interpretação. É assim que Denise, em sua leitura de Carta ao Pai, relaciona o filho ao povo brasileiro, abatido pelo pai, que representa o Estado. Um pai a quem estranhamos, a quem não reconhecemos e contra quem temos que lutar para que não sejamos “esmagados sob seus pés”.
Carta ao Pai – Fragmentos de texto de Franz Kafka nos convida a todos a encontrar maneiras, as mais distintas, de transformar esse medo (do pai), paralisante e amortecedor, em algo que nos impulsione a criar. Dessa forma, criam-se saídas outras para essa relação com o pai que, destituída de um medo mortificante, possa ceder espaço para a conquista de liberdade.
O convite está feito. Cabe a cada um de nós aceitar ou não, tendo em vista nessa empreitada que há custos materiais e, sobretudo, psíquicos a serem assumidos.
Ernesto Sérgio Bertoldo é professor associado da Universidade Federal de Uberlândia. Aluno da modalidade online do IPLA.